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'Barra de suspensão não matou Senna', afirma médico que o socorreu

do UOL

Júlia Valente

Colaboração para o UOL, em Bolonha

01/05/2024 04h00

Um segundo e três milésimos: foi essa a duração do acidente que mudou para sempre a história do automobilismo mundial e tirou a vida de um dos maiores pilotos da história da Fórmula 1, o tricampeão Ayrton Senna. Aquele Grande Prêmio do dia 1º de maio de 1994, em Ímola, na Itália, não era como os demais.

Quem se recorda com detalhes é o médico italiano Alessandro Misley, então parte da equipe de socorristas do Autódromo Enzo e Dino Ferrari. "[No domingo], quando nos chamaram para o acidente [de Senna], não nos comunicaram quem era o piloto que estava preso e ferido. Chegamos um minuto depois da ambulância, porque estávamos um pouco mais longe. E, visto que Senna era muito conhecido, ficamos atônitos."

O médico anestesista, natural da cidade de Modena, diz que imediatamente ficou claro que as condições do brasileiro eram extremamente graves e que, ainda na pista, já se pensava que o pior pudesse acontecer.

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o piloto Ayrton Senna, da equipe Williams, bate seu carro na curva Tamburello causando sua morte, durante o GP de San Marino, em Ímola (Itália)
Imagem: Reuters

"Infelizmente, a situação logo se transformou em dramática, porque Ayrton teve lesões na cabeça, na cervical e na base do crânio. Instantaneamente, ele ficou inconsciente. Os sinais vitais estavam alterados. Todas as condições não indicavam nada de bom. Tinha saído sangue da boca e do nariz, e, infelizmente, havia matéria cerebral [espalhada]. Ainda assim, fizemos várias tentativas de aspiração, ventilação e oxigenação."

As imagens imediatamente após o acidente mostravam Senna fazendo um leve movimento com a cabeça, o que trouxe esperança a quem assistia à corrida em casa de que o piloto estivesse bem. No entanto, Dr. Misley afirma que foi um movimento involuntário, e que desde o momento do impacto, Senna não recuperou mais a consciência. O italiano, junto ao médico da Fórmula 1 Sid Watkins, acompanhou Senna de helicóptero até o Hospital Maggiore, em Bolonha.

É muito difundida a teoria de que o grande agravante do acidente de Ayrton Senna foi o impacto da barra de suspensão, que ao se soltar logo após a colisão, atingiu a viseira do capacete do piloto, e, depois, sua testa. No entanto, em uma declaração inédita à imprensa brasileira, Dr. Misley é categórico ao afirmar que este não é o motivo da morte do tricampeão.

"Absolutamente não. É falso. De fato, um pedaço da suspensão entrou pelo no capacete e provocou uma lesão a nível frontal de poucos centímetros, o que, claro, não é inócuo. Mas, com certeza, não foi esse o problema a provocar a morte de Senna. A morte de Senna foi provocada pela fratura da base do crânio, devido ao forte impacto causado pela desaceleração. A lesão da barra de suspensão é secundária e não letal. [Se fosse só ela], Senna estaria vivo."

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Ayrton Senna é fotografado antes do GP de Ímola, no qual ele morreu ao sofrer um acidente (01/05/1994)
Imagem: AFP PHOTO/JEAN-LOUP GAUTREAU

O trauma de base craniana é uma lesão grave na qual a base do crânio, parte inferior onde o cérebro se assenta, fratura devido a um impacto forte ou movimento brusco. Após uma desaceleração abrupta de um corpo em alta velocidade, o cérebro, que flutua dentro do crânio, continua em movimento mesmo após o término do impacto e a parada do corpo após o acidente. Isso pode causar um efeito de "chicote", no qual o cérebro se move dentro do crânio e pode se chocar contra as paredes internas do mesmo, incluindo a base craniana.

O carro de Senna estava a pouco mais de 300 km/h no momento da batida. A brusca desaceleração, por causa do impacto contra o muro de proteção, durou pouco mais de 1 segundo. Vale lembrar que, na época, a cabeça do piloto ficava completamente exposta, protegida apenas pelo capacete.

De acordo com o Dr. Misley, a ausência de dispositivos de segurança hoje presentes foi determinante para o desfecho do acidente, tal como o sistema HANS (Head and Neck Support), estrutura que protege a cabeça e pescoço dos pilotos, desenvolvida na metade dos anos 90 e, hoje, de uso obrigatório. "Não digo que [com o HANS] não teria acontecido nada [com Senna], mas certamente o impacto e os danos seriam menores."

Fim de semana fora do comum

Ratzenberger - Pascal Rondeau/Getty Images - Pascal Rondeau/Getty Images
Roland Ratzenberger (AUT): morreu em 30 de abril de 1994, vítima de acidente nos treinos para o GP de San Marino da temporada 1994 da Fórmula 1
Imagem: Pascal Rondeau/Getty Images

Na véspera da morte de Senna, um acidente durante o treino para a qualificação tirou a vida do piloto da Simtek, o austríaco Roland Ratzenberger. Um dia antes, o brasileiro Rubens Barrichello, da Jordan, também se envolveu em um grave acidente na pista.

"Foi um final de semana muito fora do comum, que culminou com a morte de Senna. Eu fazia parte de uma das duas equipes médicas que ficavam em pontos opostos da pista. Tínhamos também dois enfermeiros, o motorista e um ortopedista. Eu atuei no acidente do Barrichello; do Ratzenberger, não.

O médico ainda trabalha em pistas de corrida, mas agora, em outro autódromo, no circuito de Mugello, perto de Florença. Ele afirma que as mudanças, nas últimas décadas, foram importantes para a segurança do automobilismo; no entanto faz questão de ressaltar que, mesmo hoje em dia, após todas as medidas de segurança implementadas, os pilotos não estão imunes a possíveis acidentes fatais, devido ao inerente risco dos esportes a motor.

Ao concluir suas recordações do dia que todos os amantes de Fórmula 1 gostariam de esquecer, Dr. Misley diz que, ao retornar ao autódromo, com o macacão médico todo sujo de sangue, a corrida já tinha terminado e o clima no local era de tensão.

"Ayrton era conhecido e amado por quase todos. Além disso, teve a morte do Ratzenberger, o acidente de Barrichello, mecânicos da Ferrari que tiveram fratura de perna em um incidente no box, um pneu que voou em direção ao público. Foi um dia realmente dramático."

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