Nos últimos anos a TV aberta, paga e os serviços de streaming têm sido inundados pelo que nós chamamos (erroneamente) de reality shows.
"MasterChef", da Band, por exemplo, não é um reality. É um programa de disputa culinária.
O mesmo vale para o "Bake Off", do SBT.
Também não considero o "BBB", da Globo, ou "A Fazenda", da Record, reality shows autênticos, porque são em um ambiente fechado, controlados por regras da produção, cheios de "cascas de banana" (dificuldades) artificiais e provocadas.
Por isso mesmo induzem seus participantes muitas vezes a outros tipos de comportamento, que não o que de suas vidas cotidianas, ou suas realidades pessoais.
Ainnn e "Largados e Pelados"? Muito menos. Embora estejam ao ar livre, os lugares foram previamente escolhidos.
A produtora jamais escolhe um lugar absolutamente ermo e estéril, porque, se fosse assim, o programa não duraria três dias.
"Ah, mas o Bear Grylls é reality", dirão outros. Bom, quem o conhece que o compre, diria minha avó.
Ed Stafford
Dito tudo isso, há programas que considero 100% "shows" de realidade. Todos os programas estrelados por esse ex-capitão do exército inglês e expert em "sobrevivencialismo" estão nessa categoria.
Ed, 47 anos, começou anos atrás no canal pago Discovery suas aventuras —e agruras— como cobaia de um experimento que ele próprio criou.
Ele já foi deixado nu em ilhas remotas, florestas e locais desertos sem nada, a não ser câmeras, baterias e um telefone por satélite no qual pode pedir socorro a uma equipe que fica de plantão a uma centena de quilômetros.
Isso é inevitável porque ele escolhe lugares com recursos limitadíssimos, e sempre corre risco de ser derrotado pelas circunstâncias.
E, sim, isso já aconteceu. Ed Stafford já perdeu batalhas: para a fome, a sede, os bichos peçonhentos ou doenças causadas por ter bebido água podre ou comido algo que não deveria num momento de desespero.
Ele não se porta como um herói, mas como um professor de sobrevivência. Muito do que ele ensina, poderemos guardar por toda a vida.
A pior de suas aventuras
Foi então que ele teve outra ideia, que no momento pode ser assistida ou no canal Discovery ou no serviço de streaming Discovery+: o reality "Sobrevivendo nas Ruas".
Ed deixou a barba crescer, parou de tomar banho, vestiu as piores roupas e se infiltrou no pior e mais sofrido dos níveis do chamado "mundo livre": foi morar nas ruas com outros sem-teto durante um horripilante inverno —inteiro— na já gélida cidade de Manchester, na Inglaterra.
Ele decidiu ser um sem-teto, mas não um pedinte. Nada pede nem aos outros sem-teto nem às pessoas comuns que atravessam seu caminho. Se alguém lhe der algo espontaneamente, ele aceita. Mas, jamais pede.
Ele depende pura e apenas da caridade de desconhecidos (e sem-tetos também).
Em sua aventura ele presencia as coisas mais horríveis, como o medonho tratamento dispensado por policiais aos sem-teto.
Ou as brigas mortais que há entre os próprios miseráveis, bem como a disputa encarniçada deles por espaços em locais públicos (dos quais serão expulsos em seguida).
O que mais chama a atenção, porém, é a bondade dos desconhecidos.
Pessoas que interrompem seus trajetos para ir ou voltar do trabalho e que conseguem enxergar esses invisíveis. Essas pessoas parecem ter o mais poderoso dos superpoderes: a empatia.
"Sobrevivendo nas Ruas" causa revolta em um momento, mas enche seus olhos de lágrimas no seguinte.
Essas pessoas não dão apenas generosas doações em dinheiro, mas também arrumam cobertas, roupas, bebidas quentes; se preocupam e perguntam como podem ajudar ainda mais.
Num capítulo, uma sem-teto agressiva o confronta após perceber a equipe de TV que o está seguindo. São momentos tensos.
O programa é de uma realidade crua e dolorosa, mas, por um lado; prova que ainda há (muitas) pessoas decentes e maravilhosas dentro desta civilização decadente e sanguinária.
Eles ficarão visíveis de uma forma que você nunca mais verá os sem-teto com os mesmos olhos.
Esse reality realmente merece o nome que tem. Isso, sim, é a realidade.
Reality: "Sobrevivendo nas Ruas", com Ed Stafford
Onde: No canal Discovery (vários horários) e no Discovery+
Avaliação: Fantástico
Ricardo Feltrin no Twitter, Facebook, Instagram e site Ooops
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