Luiz Gomes: 'Mais do que jogadores. Muito mais precisa ser feito'
No dia 5 de março, daqui a menos de um mês, o goleiro Christian Esmério completaria 16 anos. Morreu, como noticiaram os jornais deste fim se semana, sem saber que seu empresário e o Flamengo já haviam acertado tudo para que assinasse seu primeiro contrato como jogador profissional. Christian, com várias passagens pelas seleções brasileiras das categorias de base foi um dos mais promissores talentos perdidos na trágica madrugada de sexta-feira no Ninho do Urubu.
O futuro do jovem goleiro estava firmemente apontado para a concretização de seus sonhos. E é importante que se diga aqui que, para a maior parte desses garotos, ter sonhos não significa somente se tornar jogador de futebol, virar ídolo e fazer fortuna. Sonho para eles, quase todos de origem muito humilde, é bem mais do que isso, passa pela expectativa de ajudar a família, a oportunidade de garantir para os pais, os irmãos, um futuro digno e confortável, deixando para trás as dificuldades que a vida lhes impôs. Sim, muitos desses meninos - e Christian era assim, segundo os que conviviam com ele - colocam sob seus ombros, desde pequenos, o peso dessa responsabilidade. Se atribuem essa missão de vida.
Passar pelas peneiras, contudo, conseguir seu espaço, sobreviver nas divisões de base enfrentando todo tipo de percalços, condições adversas até nos requisitos básicos como alimentação, hospedagem, saúde e educação, não é, por incrível que pareça, a parte mais difícil dessa história. Virar jogador é apenas o começo, outra batalha vem depois, num país em que os salários milionários e a vida nababesca de uns poucos forma uma cortina de ilusões que esconde a realidade bem distinta que é o futebol brasileiro de verdade.
Pesquisa publicada o ano passado pelo jornal Folha de S. Paulo mostra que em média um jogador profissional ganha no Brasil quatro salários mínimos - R$ 4.024 em valores atuais. E vejam que estamos falando de uma média, não são poucos os que recebem até menos do que o piso determinado por lei. No Maranhão e em Sergipe, por exemplo, essa média é de menos de R$ 1 mil mensais. No Amazonas, na Paraíba, em Alagoas e em mais cinco estados não passa de R$ 2 mil.
De acordo com o levantamento da Folha, baseado nos últimos dados disponíveis do Ministério do Trabalho, apenas 1% dos atletas ganha sozinho mais do que 78% do que recebem todos os outros somados. Em 2018 havia 4.907 jogadores registrados em clubes das diversas divisões nacionais com salário abaixo de R$ 1 mil. E apenas 385 recebendo mais do que R$ 51 mil. Sejamos francos, não há nada de muito surpreendente nesse calabouço salarial, absolutamente enquadrado em um Brasil que debate-se com um dos maiores índices desigualdades social do planeta.
Christian Esmério tinha tudo para entrar na minoria que habita o topo da pirâmide. Por sua técnica bem desenvolvida, pelo porte físico típico dos bons goleiros já atraia a atenção de observadores estrangeiros. Tudo ficou pelo caminho. À família, que ele tanto queria ajudar, restaram a dor e as lágrimas - não pelo jogador ou pela promessa não concretizada -, mas, simplesmente, pelo filho, o sobrinho que partiu. "Christian era uma pessoa fenomenal. Foi um moleque muito sofrido. Ele e o pai dele. Para chegar onde ele chegou foi muita caminhada. Acordava 4h para pegar o BRT, depois pegava outro. Com muito custo, o pai conseguiu colocar ele no Ninho. Ele queria atingir o sonho dele, que era tirar o pai e a mãe dele da favela e chegar à Seleção", lamentava um tio no enterro.
Hoje, em algum lugar desse país, um olheiro está em ação. Um talento está sendo descoberto, um novo sonho está começando. É assim todos os dias. O mínimo que o mundo do futebol pode fazer por Christian e seus nove companheiros mortos, por essa garotada que está por vir, é apurar tudo o que aconteceu no CT rubro-negro. Responsabilizar a quem de direito é um primeiro passo. Mas está longe de ser tudo. Muito mais precisa ser feito com urgência, com respeito e responsabilidade, para que outros não tenham seu futuro abortado dessa forma.