Elis Regina foi vítima de overdose: como foram as últimas horas da cantora
A minissérie "Elis - Viver é Melhor que Sonhar", adaptação do longa de 2016, biografa a trajetória de uma das cantoras mais populares da história da música brasileira de forma linear e sumária, retratando o período que vai da adolescência até a morte da artista, um dos pontos mais delicados e controversos dos 36 anos de vida.
Na cena que antecede a morte, Elis, perturbada emocionalmente, bebe sobre a cama enquanto ouve música em um gravador de fitas K7. Há frascos de comprimidos no local. Ela usa o telefone e, após tocar a bebida com o dedo, desfalece para nunca mais acordar. Sua última ligação foi endereçada ao namorado (e advogado) Samuel Mac Dowell.
Muito antes disso, a morte de Elis Regina é citada logo na abertura da minissérie, em um trecho da transmissão do Jornal Nacional. Não há menção direta à causa. "De repente, hoje de manhã, em São Paulo, o coração de Elis parou. Calou-se a voz e o Brasil começou a chorar", diz o apresentador chamando a reportagem que mostra o velório da artista.
No encerramento da minissérie, que trouxe cenas inéditas e uma entrevista fictícia de Elis interpretada por Andréia Horta, um texto assinado pelo cartunista Henfil ressalta, de forma poética e figurada, que a cantora foi "morta" pelos homens ao seu redor, que não souberam lidar com um espírito muito à frente de seu tempo. "Nós, homens, não conseguimos namorar uma mulher livre."
Nada disso foi exibido assim por acaso. Em entrevistas, o diretor e roteirista Hugo Prata sugere que abordar de forma breve o período em que Elis consumiu e não escancarar o motivo da morte no roteiro foram decisões de cunhos histórico e estético, pensadas para história funcionar fazer a narrativa fluir de forma mais natural.
Independentemente disso, o fato é que a manhã do dia 19 de janeiro de 1982 entrou para a história da música brasileira como o dia em que o Brasil perdeu um de seus grandes talentos —e, também, o início de um de seus grandes escândalos. Elis, que não tinha histórico de abuso, sofreu uma parada cardíaca após consumir uísque, cocaína e tranquilizantes. A exemplo de astros do rock, a maior cantora do país havia morrido de overdose acidental.
Era demais para a sociedade conservadora brasileira, que vivia o ocaso do regime militar. Sob esse contexto, Elis, uma mulher intelectualmente independente e separada de dois maridos, passou de unanimidade nacional a persona nongrata para uma parcela dos fãs, que começou a questioná-la artística e moralmente.
Para proteger sua imagem, parentes, amigos e pessoas próximas a Elis chegaram a ir a público contestando a causa da morte oficial, por intoxicação provocada por bebida alcoólica e cocaína. Na época, o diretor do IML paulistano era Harry Shibata, que seis anos antes assinara o laudo falso sobre o suposto suicídio do jornalista Vladimir Herzog, assassinado por oficiais militares.
"Mitos são as versões de que ela teria sido assassinada ou de que teria cometido suicídio. O fato foi que ela consumiu uma quantidade de cocaína com Cinzano. A bebida potencializou o efeito da droga, ela teve uma parada cardíaca e morreu. Não existe polêmica", afirmou em entrevista ao jornal "Zero Hora" Julio Maria, autor da biografia "Elis Regina - Nada Será Como Antes".
Segundo Nelson Motta, produtor, amigo e confidente de Elis, tudo o que ocorreu naquele dia pode ser resumido em uma palavra: fatalidade. "Elis não foi uma drogada que teve uma overdose. Isso não existe, eu a conheci. Elis bebia um pouco, fumou uns baseados no começo dos anos 1970, besteirinha. Me surpreendi quando alguém me contou que ela tinha embarcado no pó. Elis morreu por acidente. Sua causa mortis foi parada cardíaca", disse ele em entrevista à revista Quem.
O laudo diz 'mistura de álcool e cocaína'. Se mistura de álcool e cocaína matasse, 80% dos artistas da MPB estariam mortos. Por isso digo que foi acidente. Alguma coisa, que só Deus sabe, deu errado ali." Nelson Motta
Como aconteceu
Na noite do dia 18 de janeiro, Elis e Samuel haviam recebido amigos no apartamento da cantora na rua Melo Alves, no bairro Jardim Paulista, área nobre de São Paulo. Os convidados deixaram o local por volta das 21h e, Mac Dowell, horas depois. Lidando com a pressão de ser mulher, mãe e de ter de continuar lançando novos discos, Elis queria um tempo para se concentrar nas músicas do próximo trabalho.
Abalada emocionalmente, ela não conseguia pregar os olhos. De acordo com o namorado, nas últimas ligações que trocaram, já pela manhã, Elis mais balbuciava do que falava. Sem obter retorno, Samuel saiu de seu escritório na avenida Ipiranga e correu para o apartamento, arrombando a porta e encontrando Elis estirada e inerte no quarto.
O advogado acionou o médico da cantora e tentou chamar uma ambulância, mas, o carro não aparecia. Ele então resolveu levá-la de táxi para o pronto-socorro do hospital das Clínicas de São Paulo. Elis chegou ao local às 11h45, já sem vida.
"Samuel tentava reavivá-la, gritando seu nome e fazendo respiração boca a boca", diz a biografia "Elis Regina - Nada Será Como Antes", que defende que a demora de mais de uma hora da ambulância foi determinante para a morte. "Os sinais mostravam que a cantora havia chegado aos seus cuidados tarde demais", diz outro trecho do livro, citando a médica responsável pelo atendimento.
Não demorou para a morte virar notícia, a mais chocante do ano. Elis Regina foi velada com honras de chefe de estado a partir das 16h20 no palco Teatro Bandeirantes, centro da capital paulista, onde brilhara intensamente entre 1975 e 1977 no espetáculo Falso Brilhante, maior sucesso de sua carreira.
Cerca de 15 mil fãs acompanharam de perto a cerimônia, cantando músicas como "Romaria" e prestando suas últimas homenagens. O cortejo, em um caminhão do Corpo de Bombeiros, praticamente parou a cidade, partindo no fim da manhã do dia seguinte rumo ao cemitério do Morumbi, onde Elis Regina foi sepultada cercada por outra multidão.