Neta de Dona Zica e Cartola, Nilcemar Nogueira critica estrutura comercial das escolas de samba
Anderson Baltar
do BOL, no Rio de Janeiro
29/09/2016 13h17
Nilcemar Nogueira, neta dos lendários sambistas Dona Zica e Cartola, luta para resgatar as raízes do samba. Em entrevista ao BOL, a presidente do Museu do Samba, no Rio de Janeiro, relembra o passado ao lado dos avós e critica a estrutura comercial estabelecida nas escolas de samba, destacando que as agremiações se preocupam demasiadamente com a preparação para os desfiles e menos em formar laços com as comunidades.
“As escolas pensam exclusivamente no Carnaval. E o Carnaval é um produto da indústria cultural. Nessa relação escola de samba-empresa, começa a morrer justamente o seu produto, que é o samba como forma de expressão. Estamos falando em dança, ritmo, poesia”, destaca.
A entrevista, que conta a história de Nilcemar, é parte do especial do BOL sobre o Centenário do Samba.
Trajetória da paixão pelo samba
Nascida em Botafogo e criada em Olaria, no subúrbio carioca, a jovem Nilcemar perdeu o pai aos 14 anos de idade. Em consequência, se mudou, ao lado da mãe e do irmão para a casa dos avós, ao pé do morro de Mangueira. Essa história seria semelhante à de várias outras adolescentes cariocas se não houvesse uma particularidade: os avós em questão eram Dona Zica e Cartola. Esse encontro mudaria a vida de Nilcemar e faria surgir, muitos anos depois, grandes iniciativas em defesa da preservação do samba.
Nessa época, em meados dos anos 70, Cartola vivia uma fase de grande sucesso, em consequência da gravação, por Beth Carvalho, de joias inéditas como “As Rosas Não Falam” e “O Mundo é Um Moinho”. Acompanhando o avô, que era pai adotivo de sua mãe (por ser estéril, Cartola não teve filhos biológicos), para onde quer que ele fosse, desde aparições em TV, shows e gravações, Nilcemar começou a ter a noção do papel que o poeta mangueirense tinha na música brasileira. “O interessante é que ele, ao mesmo tempo em que era apenas respeitado no morro, era idolatrado na Zona Sul. Aqui em Mangueira, ele era apenas mais um ‘tio’ dentre tantos outros. O samba nunca teve a cultura de valorizar seus grandes nomes. Esse reconhecimento sempre veio de fora e isso sempre me incomodou”, atesta.
Esse incômodo acompanhou Nilcemar por grande parte de sua vida. Após se formar em Nutrição e Letras e ter trabalhado na indústria alimentícia por mais de 15 anos, ela recebeu o convite para trabalhar no Museu da Imagem e do Som, no Rio. Chegou como funcionária da área técnica e acabou por presidir a instituição. Essa experiência, em conjunção com um mestrado, daria o norte para fazer diminuir essa sensação. “Fiz o curso de Bens e Projetos Sociais na FGV (Fundação Getúlio Vargas) e isso mudou a minha vida. A partir deste momento, vi que precisava fazer algo mais efetivo para preservar a memória de meu avô. Meu irmão tinha o projeto do Centro Cultural Cartola e eu mergulhei de cabeça”, relata. Recentemente, Nilcemar concluiu o doutorado em Psicologia Social pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Samba como patrimônio imaterial brasileiro
Fundado em janeiro de 2001, o Centro Cultural, localizado a cerca de 200 metros da quadra da Mangueira, se notabilizou por reunir não só um vasto acervo sobre o compositor da verde e rosa, mas também por se dedicar à preservação da memória do samba carioca, independentemente de cor de bandeira de escola. Abrigando documentos, realizando a gravação de depoimentos e organizando eventos, o Centro Cultural se firmou como referência para sambistas e pesquisadores. E, como principal empreitada, conseguiu, em 2007, que o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) reconhecesse o samba como patrimônio imaterial brasileiro. Por consequência, os resultados se tornaram visíveis na própria comunidade. “As crianças começaram a saber quem era Cartola, a cantar suas músicas, a se interessar por sua vida e obra”, conta, embevecida.
O projeto adquiriu tamanho vulto que, no início deste ano, mudou de nome para Museu do Samba, fortalecendo a identidade de um espaço voltado para a disseminação dos valores originais do ritmo e, acima de tudo, para dar voz aos sambistas. “Hoje temos um trabalho em prol da difusão do samba. Nosso principal papel é dar voz ao sambista. É preciso que ele conheça a sua história e saiba de seu papel em meio a esse sistema. Hoje em dia, as escolas de samba ainda possuem, em muitos momentos, um sistema escravocrata. Aos atuais mandatários é fundamental o apagamento da memória. Afinal, perdem-se os referenciais e os gestos arbitrários são legitimados”, explica.
Nilcemar é uma crítica ferrenha dos rumos que o samba seguiu, especialmente dentro das escolas. Ela, que desfilou pela Mangueira pela primeira vez aos 14 anos, na comissão de frente, diz não sentir a mesma emoção ao pisar na Sapucaí nos dias de hoje. “Antigamente, as escolas eram feitas pelas comunidades, através da troca de experiências e visões. Hoje é tudo decidido de cima, sem conversa, sem discussão. E eu nunca me dobrei para esse tipo de coisa. Muitos de nós continuamos frequentando as escolas mais por obrigação do que por gosto”, analisa.
A estrutura comercial das escolas de samba é muito criticada por Nilcemar: "As escolas pensam exclusivamente no Carnaval. E o Carnaval é um produto da indústria cultural. Nessa relação escola de samba – empresa, começa a morrer justamente o seu produto, que é o samba como forma de expressão. Estamos falando em dança, ritmo, poesia. As escolas atualmente não se preocupam com os seus ingredientes e estão matando a galinha dos ovos de ouro. Antigamente, os sambistas nasciam nas escolas. Hoje, para termos um mestre-sala mirim, precisamos fazer oficinas".
Mesmo assim, o coração da mangueirense de 56 anos ainda consegue ser tocado pelo Carnaval atual. Ao ser perguntada sobre o desfile da verde e rosa de 2016, que conquistou o título após 14 anos de jejum, ela abre um sorriso e se derrete: “Eu quase me emocionei como nos velhos tempos (risos). A escola estava linda, o samba era muito bom e as pessoas caíram dentro. A Mangueira estava há muito tempo conseguindo más colocações e o povo veio disposto a virar o jogo”.
Emoção mesmo brota quando Nilcemar recorda da avó. Dona Zica, falecida em 2003, além de companheira e principal incentivadora de Cartola, também exercia uma importante liderança no morro de Mangueira. Ao lado de Dona Neuma, filha do primeiro presidente, Saturnino Gonçalves, Zica conseguia ser ouvida por autoridades e obter conquistas para a comunidade. “Ela foi além do que se poderia ser destinado a uma mulher negra de comunidade. Era uma pessoa que era amada em qualquer lugar que fosse. Extremamente agregadora, foi importantíssima para a vida de meu avô, que não teria chegado aonde chegou se não fosse ela. Ela o incentivou o tempo todo e sempre esteve ao seu lado. Foi uma líder que até para posse de presidentes da República foi convidada. E deixou um legado de muito amor”, sintetiza Nilcemar.
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