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Violência obstétrica: agressão a grávida em vídeo de parto vai além do tapa

Do BOL, em São Paulo

21/02/2019 15h45

Um vídeo chocante que circula nas redes sociais com uma mulher em trabalho de parto sendo agredida por um médico obstetra na maternidade Balbina Mestrinho, em Manaus (AM), reforça o debate da violência obstétrica.

As imagens fortes, que mostram o obstetra Armando Andrade Araújo discutindo e até dando tapas entre as pernas da parturiente, foram analisadas pela médica ginecologista e obstetra Luísa Jacques de Brito Veiga, do Coletivo Feminista de Sexualidade e Saúde e do Coletivo Nascer, e pela médica de família Thaís Machado Dias.

As profissionais mostram que as agressões à mulher vão muito além do tapa que ela recebe do médico: o vídeo é um retrato da violência obstétrica no Brasil.

Veja também:

  • O que é violência obstétrica?

    Segundo Thaís, a expressão "violência obstétrica" é utilizada para descrever e agrupar diversas formas de violência (e danos) durante o cuidado obstétrico profissional: "Inclui maus-tratos físicos, psicológicos e verbais, assim como procedimentos desnecessários e danosos - episiotomias (incisão efetuada na região do períneo para ampliar o canal de parto), restrição ao leito no pré-parto, clister (injeção por via retal), tricotomia (raspagem dos pelos) e ocitocina (quase) de rotina, ausência de acompanhante, o excesso de cesarianas - crescente no Brasil há décadas, apesar de algumas iniciativas governamentais a respeito", explica.

    Luísa complementa: "O termo também se refere à violência psicológica, quando há humilhação, intimidação, constrangimento ou ameaças. Todas essas práticas estão presentes em diversas maternidades públicas e privadas do Brasil, onde ainda impera um modelo obsoleto de assistência ao parto, centrado no médico e pautado em intervenções não baseadas em evidências científicas, que têm como uma das consequências a perda de autonomia das mulheres com relação aos seus corpos e ao processo fisiológico de parir".

  • Há violência obstétrica no vídeo?

    Para a ginecologista Luísa, a partir das imagens que circulam na internet, é possível confirmar que há violência obstétrica, e não apenas pela cena exibida ao 1 minuto e 46 segundos do vídeo, quando a mulher recebe tapas do médico entre as pernas e chora: "Agressão física é inadmissível em qualquer contexto de assistência à saúde de um indivíduo".

    "Fica claro no vídeo que há uma tentativa de limitar e restringir a liberdade de posição da mulher durante o trabalho de parto, mesmo quando ela demonstra dor na posição em que se encontra. O médico a ofende com comentários que minam a sua autoconfiança e fazem parecer que ela é parte passiva do processo, como no momento em que ele menciona que ela 'não está colaborando'", comenta a especialista.

    Luísa também ressalta que não haveria a necessidade de tantos exames de toque. "Há exames de toque sucessivos, inclusive por profissionais que chegam à cena de parto sem sequer se apresentar e sem solicitar o consentimento para que o procedimento seja realizado. Também observo a ausência de compartilhamento de informações e explicações à mulher durante o processo - é possível perceber que os dois profissionais saem para conversar entre si, como se as informações e decisões não dissessem respeito à própria gestante."

  • Naturalização da violência

    A ginecologista e obstetra Luísa Jacques de Brito Veiga afirma que, apesar de as atitudes apresentadas no vídeo claramente configurarem violência obstétrica, ainda são cenas frequentes em diversas maternidades do país, públicas e privadas.

    Ela revela que tais ações provocam traumas que acompanham a mulher para o resto da vida: "O impacto psicológico na vida da mulher é uma das principais consequências das diferentes violências sofridas durante o seu trabalho de parto, com manifestações que parecem se assemelhar inclusive às da mulher vítima de violência sexual. Além disso, impactos físicos também podem ocorrer, como por exemplo lesões relacionadas à permanência prolongada em posição ginecológica. Com relação à saúde do bebê, todo o contexto relacionado à má prática obstétrica, com diversas intervenções não baseadas em evidência científica, tem potencial de interferir negativamente no bem-estar fetal e nos desfechos neonatais".

  • Boas práticas na hora do parto

    Luísa faz uma lista de boas práticas que devem ser seguidas nos hospitais e maternidades.

    - "Toda gestante admitida em trabalho de parto em uma maternidade deve ser acolhida e respeitada;

    - A ela devem ser fornecidas as informações referentes à evolução do seu trabalho de parto a cada reavaliação pela equipe e, exceto em situações de emergência e risco iminente de vida, as decisões devem ser compartilhadas, respeitando os desejos e as individualidades da mulher;

    - Deve ser oferecida e estimulada a liberdade de posição durante o trabalho de parto e, idealmente, durante o parto, porém, nas maternidades em que o parto é necessariamente realizado em maca e na posição ginecológica, tal posicionamento deveria ser postergado até o momento final do período expulsivo, bem próximo ao parto;

    - Devem ser oferecidos todos os métodos não farmacológicos de alívio de dor e, nas maternidades onde estiver disponível a analgesia de parto, ela deve ser oferecida às gestantes quando solicitado, após esclarecimento quantos aos riscos e benefícios do procedimento;

    - Devem ser evitados toques sucessivos e, quando realizado, deve ser explicado à gestante o motivo do exame e solicitado o seu consentimento, assim como em qualquer outro exame invasivo ou intervenção durante o trabalho de parto;

    - Todo profissional envolvido na assistência deve pedir licença e se apresentar ao entrar na sala de parto e deve ser evitado o acúmulo de profissionais em sala;

    - A presença do acompanhante durante toda a internação é direito legal da gestante e deve ser respeitado;

    - É importante, ainda, que as maternidades atualizem os seus protocolos continuamente com base nas evidências científicas mais recentes e desestimulem práticas obsoletas, desatualizadas e, na maior parte das vezes, nocivas."

  • Código de ética

    A médica de família Thaís Machado completa ao ressaltar dois trechos do Código de Ética Médica para comentar a função dos especialistas da saúde:

    "O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade" (Cap. I, artigo VI, pag. 30).

    É vedado ao médico: 'Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo' (Cap. IV, artigo 24, pag. 37)."

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