ONG campeã de emendas contratou professor de boxe em curso de maquiador
![A instrutora de boxe Day Eiras, que foi contratada em projeto sem aulas de esporte - Reprodução/TikTok](https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/d8/2024/12/06/farra-das-ongs-a-instrutora-de-boxe-day-eiras-que-foi-contratada-em-projeto-sem-aulas-de-esporte-1733513733186_v2_450x450.png)
A ONG Con-tato, campeã em financiamentos por emendas parlamentares, colocou professores de boxe, jiu-jitsu e futebol na lista de contratados de um projeto de qualificação profissional voltado para cursos como de maquiador, cabeleireiro e designer de sobrancelhas.
Ao menos quatro pessoas — entre elas, dois professores de jiu-jitsu e um de futebol — afirmaram à reportagem não terem participado do projeto, apesar de constarem na lista.
As contratações para o Qualifica RJ — realizado entre janeiro e novembro do ano passado, ao custo de R$ 12 milhões — foram feitas sem transparência, mas o UOL teve acesso ao relatório final de prestação de contas da ONG, que traz a relação com 166 nomes.
O relatório levanta suspeitas não só sobre o destino dos salários dos profissionais — entre R$ 1.300 a R$ 8.000 — como também o de milhares de auxílios em dinheiro pagos a alunos do projeto.
No papel, a ONG disse ter implementado 74 núcleos do Qualifica RJ — com um professor e um monitor — e que cada unidade teve entre cem e 200 estudantes, que receberam R$ 180.
O documento, no entanto, traz apenas uma pequena lista de matriculados, que corresponde a cerca de 10% do total dos 11.242 alunos que a Con-tato diz ter atendido no projeto. Já a CGU (Controladoria-Geral da União) e a Unirio (Universidade Federal do RJ) — parceria da ONG na execução do projeto — dizem que o total de alunos não chega a um terço desse número.
Em julho, reportagem da série do UOL "A Farra das ONGs" já havia revelado fortes suspeitas de superfaturamento na compra de 11 mil camisas para o projeto.
Em novembro, a CGU detectou irregularidades no Qualifica RJ em auditoria feita por determinação do STF. "A falta de precisão sobre as especificações das contratações realizadas nos contextos dos termos de parceria e a carência de informações mais detalhadas sobre sua execução impossibilitam afirmar se os objetos contratados foram realizados de forma satisfatória".
A Con-tato afirmou, por email, que "os questionamentos decorrentes do relatório final de prestação de contas serão respondidos à Unirio e à CGU no momento oportuno". A ONG recebeu R$ 137,7 milhões em emendas parlamentares entre 2020 e 2024 — o maior volume segundo auditoria da CGU feita em dez ONGs.
Projeto contratou apoiadores de filho de deputado
Após reportagem do UOL, uma comissão da Unirio auditou o projeto em outubro, mas disse ter se convencido com as justificativas da ONG. Ao ser novamente questionada no mês passado, a universidade convocou reunião extraordinária para mais uma averiguação.
A coordenação do projeto — ligada à Unirio — afirmou na reunião que poderia atestar apenas a participação de cerca de 1.800 alunos. A ONG pediu dez dias para provar que foram mais de 11 mil. Em linha com a Unirio, a CGU diz que seriam entre 1.322 e 2.882 alunos.
O Qualifica RJ foi financiado com recursos de uma emenda da bancada de parlamentares do Rio de Janeiro. O UOL apurou, com base em ofícios enviados à Unirio, que três políticos são os padrinhos da verba: os deputados da bancada evangélica Sóstenes Cavalcante (PL) e Otoni de Paula (MDB) e o ex-deputado Ricardo da Karol (PL).
A lista de contratados do projeto também aponta para um quarto político oculto: o deputado federal Jorge Braz (Republicanos), ligado à Igreja Universal.
A reportagem localizou no relatório da Con-tato as contratações de ao menos 11 apoiadores de Alex Braz (Republicanos), filho de Jorge Braz e candidato a vereador derrotado neste ano no Rio. Por meio de assessoria de imprensa, eles negaram ter feito indicações para o Qualifica RJ.
"Professora de beleza"
O UOL conseguiu contato com dois apoiadores de Alex Braz contratados como professores no Qualifica RJ que disseram não ter trabalhado nem recebido do projeto: o professor de jiu-jitsu Leandro Gomes Moreira, de Curicica, e Tatiane Montani, síndica de um condomínio em Guadalupe. Ambos teriam participado de projetos esportivos ligados a Alex Braz.
Entre os contratados como professores, também está a instrutora de aeroboxe Dayane Eiras, que foi candidata a deputada estadual em 2022, mas não se elegeu. Seu salário foi de R$ 1.800.
Ela afirmou ter trabalhado como "professora de beleza" no projeto, o que incluiria cursos de depilação, cílios, sobrancelhas e limpeza de pele. Dayane disse que atuou no núcleo de Curicica do Qualifica RJ, mas o relatório não aponta nenhuma unidade no bairro da zona oeste. Questionada, ela não respondeu mais.
Lutador foi coordenador
Sem qualquer relação com cursos profissionalizantes, um dos coordenadores do projeto foi o instrutor de boxe Auzelino de Jesus Brito, o Lino Brito, com salário de R$ 5.000.
Nas redes, Brito se mostra muito próximo a Alex Braz e elogia os projetos sociais ligados a ele. Procurado, disse que "não se sente confortável para responder a qualquer pergunta" sobre sua participação no Qualifica RJ.
Outra lutadora de boxe contratada como professora, com salário de R$ 1.800, foi Luiza Trespadini dos Santos. Ela é cunhada de uma das coordenadoras-gerais do projeto, Flávia Faustino da Silva, que tinha salário de R$ 8.000. Ambas são apoiadoras de Alex Braz.
A reportagem apurou que, dos três padrinhos oficiais da emenda, Otoni de Paula seria o mais próximo de Jorge e Alex Braz. Ele negou a proximidade e disse que não haveria sentido que o colega usasse a verba, já que ele próprio teve um parente candidato a vereador no Rio.
Professores desconhecem contratação
Dois indicados por Sóstenes Cavalcante disseram ao UOL não ter participado do projeto: o professor e árbitro de jiu-jitsu Itagiba Montes Carneiro Filho e o professor de futebol Rogério Navarro Louredo. Ambos demonstraram surpresa por estarem na lista do Qualifica RJ e disseram que foram contratados para um projeto esportivo ligado a Sóstenes em 2022.
O deputado encaminhou ao UOL uma tabela de professores e monitores de 24 núcleos — que seriam sua parte no Qualifica RJ —, e efetivamente esses nomes estão na lista divulgada pela Con-tato. Itagiba e Rogério não aparecem na lista do parlamentar. Sóstenes diz que a ONG deve ser questionada pelo que chamou de erro e que "controla com lupa" os cursos que apadrinha.
A reportagem também identificou no relatório da Con-tato pessoas ligadas a Ricardo da Karol, cujo trabalho não têm a ver com os cursos profissionalizantes do Qualifica RJ. Um dos exemplos é o da veterinária Janice Biazzi Pires, contratada como monitora, com salário de R$ 1.300. Procurados, ela e Ricardo da Karol não se manifestaram.
As contratações e os pagamentos dos auxílios aos estudantes foram delegados pela Con-tato a outra ONG, o Instituto Crescer com Meta, que recebeu R$ 2 milhões pelo serviço. Essa manobra fez com que os nomes dos contratados não aparecessem em tempo real no site do governo federal que dá transparência aos projetos. Procurado, o Crescer com Meta não se manifestou.