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O que é milícia?

Secretaria de Segurança Pública do Rio / Divulgação
Imagem: Secretaria de Segurança Pública do Rio / Divulgação

do BOL, em São Paulo

22/02/2019 13h27

Desde 2007, o dicionário Houaiss trata milícia como um fenômeno que ocorre no Rio de Janeiro, definindo esse tipo de organização como um "grupo armado de pessoas, geralmente com formação militar, paramilitar ou policial, que atua à margem da lei em algumas comunidades carentes, pretensamente para combater o crime". A preocupação com esse tipo de atividade redundou em menção explícita no pacote anticrime do ministro Sergio Moro, enviado ao Congresso no último dia 19.

O BOL ouviu especialistas para definir, na prática, os grupos criminosos que ganharam destaque na mídia nacional e internacional desde a morte da vereadora Marielle Franco, cujo assassinato teria ocorrido a mando de milicianos.

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    O que são milícias?

    "Milícias são grupos criminosos formados a partir de agentes de segurança pública", explica José Cláudio Souza Alves, doutor em sociologia com ênfase em violência urbana pela Universidade de São Paulo e professor titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. "São grupos paramilitares compostos por agentes públicos de segurança ou civis, que se organizam para exercer funções típicas de Estado, como segurança pública", complementa o antropólogo Paulo Storani, ex-capitão do Bope.

    Para Storani, o termo milícia passou a ser usado para designar grupos compostos por policiais, bombeiros, agentes penitenciários e civis que exercem o controle de comunidades: "Cobram por segurança ou exploram atividades econômicas, exercendo seu poder por meio de armas de fogo e intimidação das pessoas pela violência física ou psicológica".

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    Qual o propósito das milícias?

    "A função das milícias é ter ganhos políticos, econômicos, sociais e culturais. São esses ganhos que distinguem a milícia de grupos de extermínio. Podemos dizer que as milícias são a restruturação desses grupos de extermínio", explica o sociólogo José Cláudio Souza Alves. O pesquisador acredita que as milícias só existem por haver uma intenção do Estado de manter esses grupos. "Muitos falam em poder paralelo, mas isso é uma grande farsa, o próprio Estado é o poder. As ilicitudes são organizações 'permitidas' pelo Estado para manter as classes dominantes. O Estado estar ausente é uma mentira; na verdade, ele opta por estar por fora, sendo conivente com o que se passa", completa Alves.

    Alba Maria Zaluar, doutora em antropologia pela USP, explica de forma prática a relação entre milicianos e cidadãos para compreender seu propósito: "Há uma diversidade de situações na relação entre milicianos e moradores das comunidades, sendo que as mais desenvolvidas no processo de vender segurança são as de milicianos que, além de imporem o seu serviço aos moradores amedrontados, acrescentam outras exigências, tais como a compra de mercadorias mais caras, a compra de sinal ilegal de TV a cabo, o pagamento de taxas por cooperativas de transporte alternativo que circulam em seu território, o pagamento de altos percentuais para a compra, venda e aluguel de imóveis".

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    Como as milícias atuam?

    Segundo o antropólogo Paulo Storani, as milícias atuam em comunidades carentes de atenção, com ações permanentes da polícia e desconsideradas pela mídia. "São mais organizadas que os traficantes, por serem compostas por agentes ou ex-agentes públicos, que buscam se infiltrar na política, como forma de aumento de seu poder e influência", explica.

    O poder das milícias está justamente em se estruturar em diferentes frentes, conforme esclarece o professor José Cláudio Souza Alves: "No início, os grupos de extermínio viviam à base de taxas para a segurança nas comunidades e execuções sumárias; a milícia veio para transformar esse jogo. Hoje, milicianos cobram moradores por segurança nas comunidades, vendem água, gás, cigarro, estão inseridos na política e até traficam drogas". E o pesquisador completa: "A milícia é a face mais sombria e violenta do Brasil atual, principalmente no Rio de Janeiro".

    Para Alba Maria Zaluar, doutora em antropologia, as formas de atuação das milícias podem ser muito diversas: "O trabalho de campo etnográfico nas áreas dominadas por milícias no Rio de Janeiro revelou que, apesar das semelhanças na sua composição e na forma de extrair lucros do território dominado, havia muitas diferenças na maneira de atuação desses grupos. Algumas milícias não aceitam bailes funk, enquanto outras os estimulam. Umas fazem a ronda sem ostentar armas, em outras seus membros portam-nas e usam até toucas de ninja na comunidade, embora sempre detenham o monopólio do uso de armas. Algumas apresentam atitudes e comportamentos mais previsíveis, sendo possível orientar-se pelo que se espera dos seus membros, enquanto outras são o reino do arbítrio".

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    Como surgiram as milícias?

    O antropólogo Paulo Storani divide o surgimento das milícias em três etapas, sendo a primeira referência, em meados da década de 1980, como uma organização comunitária para autoproteção, exercida pelos próprios moradores de comunidades constituídas de operários nordestinos que trabalhavam nas obras da explosão imobiliária da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, para evitar a instalação do tráfico de drogas. A segunda etapa foi formada por agentes públicos que receberam casas em conjuntos habitacionais construídas pelo governo, na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Eles se organizaram em grupos na tentativa de impedir a instalação de traficantes e repreender delitos. A terceira etapa se deu pela oportunidade que policiais encontraram de explorar atividades econômicas nas comunidades, após expulsarem os traficantes de drogas e outros criminosos, quando não os empregavam. As três etapas fizeram surgir um modelo específico de atividade criminosa que passou a se designar como milícia.

    O sociólogo José Cláudio Souza Alves enxerga o surgimento em outra perspectiva: "A gestação das milícias aconteceu entre 1995 e 2000, quando aumentam as ocupações de terra na zona oeste do Rio. Nessas ocupações começam a surgir lideranças, muitas delas autoritárias. Esses líderes perambulavam em todos os setores das comunidades, até que, em 2000, entram na política", explica. "As milícias são sustentadas por dois braços: o econômico e o político. No início dos anos 2000, quando realmente entram na política, as milícias se tornam mais poderosas e começam a atuar em diferentes frentes, diversificando e fortalecendo o braço econômico. A junção de grupos de extermínio dos anos 70 e seu envolvimento no tráfico de drogas na década de 90 dão origem às milícias", completa. 

  • Montagem BOL

    De onde vem o termo milícia?

    "Impressiona, no estudo do uso do termo milícia ao longo da história mundial, seu uso equivocado recentemente. A palavra 'militia' tem raízes latinas que significam 'soldado' (miles) e 'estado, condição ou atividade' (itia) e que, juntas, sugerem o serviço militar. Mas milícia é comumente usada para designar uma força militar composta de cidadãos ou civis que pegam em armas para garantir sua defesa, o cumprimento da lei e o serviço paramilitar em situações de emergência, sem que os integrantes recebam salário ou cumpram função especificada em normas institucionais", explica a antropóloga Alba Maria Zaluar.

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    Como a milícia se enquadra na lei?

    Daniel Raizman, professor de direito penal e criminologia na Universidade Federal Fluminense, explica que o Código Penal foi atualizado em 2012 para enquadrar a milícia como um tipo de crime específico, pois antes era julgada como quadrilha ou bando. "Era difícil tipificar milícia como quadrilha, ela tem suas especificidades. Porém a legislação entendeu que o Estado devia ser claro que milícia é crime", explica Raizman. 

    O artigo 288-A do Código Penal diz que é crime constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos no Código.

    Raizman esclarece que, na legislação criminal, a milícia não está explicitamente mencionada, mas pode se enquadrar na Lei 12.850 como organização criminosa.

    Para o professor, organizações criminosas existem no mundo todo, mas cada país tem suas individualidades, como no caso da milícia: "A importância de especificar milícias no Código Penal está em tratá-la de forma específica como o fenômeno que é", explica. 

  • Pedro Ladeira/Folhapress

    Como o pacote de Moro aborda a milícia?

    "Em relação à milicia, o pacote anticrime de Moro quer reformar a lei de organização criminosa e formalizar a tipificação de milícia", explica o professor de direito penal e criminologia Daniel Raizman. "Acho que não é necessário, pois as questões são mais simbólicas do que concretas", acredita.

    O professor explica ainda que há uma série de medidas no pacote que mudam o critério relativo ao réu. "Por exemplo, no âmbito da liberdade, Moro propõe que o miliciano aguarde o julgamento privado de liberdade. Além disso, ele tenta restringir o patrimônio, ou seja, o Estado pode confiscar o dinheiro do criminoso antes da sentença. O que ele pretende é modular a lei penal e, com mais tempo, a lei processual. No fim, o ministro pretende diminuir a dependência do juiz que vai julgar o réu, implementando critérios mais claros na própria Legislação no âmbito das milícias", finaliza. 

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    Existe solução para as milícias?

    Para encarar uma questão enraizada na sociedade carioca, é preciso encarar a realidade: não existe solução fácil. O antropólogo Paulo Storani tem uma visão pessimista sobre o futuro: "Da mesma forma que o tráfico de drogas, não tem solução para as milícias. Pela falta de uma estrutura eficiente de fiscalização e investigação, morosidade processual penal por parte do Estado, falta de penas duras e de um regime de execução penal que realmente mantenha os criminosos presos, qualquer perspectiva positiva se transforma em utopia", explica. "Anos de condescendência por parte dos poderes constituídos permitiram a construção desse cenário atual, portanto, urge a necessidade de um grave esforço político para desenvolvimento de políticas públicas que permitam uma inflexão desse cenário", completa.

    José Cláudio Souza Alves discorda do ex-comandante do Bope: "O tráfico não é o problema. Para começar, precisamos mudar nossas políticas de drogas. Outro ponto, a polícia não pode ser homicida e suicida, precisamos repensar a Polícia Militar. Precisamos criar políticas sociais para jovens envolvidos com o tráfico, como incentivo à educação, cultura, mobilidade e esporte. Esses jovens também precisam de acompanhamento psicológico e um emprego digno. Agora, quando isso vai ser prioridade?", finaliza.

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