'Ele fala, a gente faz': por dentro do 'quartel-general' criado por Marçal
Em um sobrado em Alphaville, cerca de 40 pessoas se reuniram na noite do dia 17 de setembro, uma terça-feira, para cantar louvores, ler a Bíblia e dar testemunhos de transformação. Nada muito diferente de um grupo de oração — exceto pela reverência a Pablo Marçal.
Empresário, ex-coach e candidato à Prefeitura de São Paulo, Marçal é também fundador do Quartel-General do Reino, movimento criado no final de 2021 que mistura religião, autoajuda e culto à sua imagem.
Chamados de "generais", os membros dizem que o único líder é Jesus, mas naquela noite Marçal era onipresente: homens usavam o boné com a letra M, e havia carros com o adesivo eleitoral do candidato do PRTB estacionados na garagem.
Duas das quatro pessoas que falaram durante o evento mencionaram o empresário como motivo de mudança em seus estilos de vida. No encerramento, Marcelo Arado, 43, que conduzia o encontro daquele dia, se despediu com: "Boa noite, e faz o M".
A reunião daquele dia era de um entre vários Quartéis-Generais do Reino, grupos que se reúnem periodicamente para "propagar a cultura do Reino de Deus", segundo uma cartilha. Segundo membros, havia um aplicativo que contava o número de filiais e participantes, mas ele não funciona mais. Arado diz que, hoje, é impossível estimar o tamanho da organização, mas que a biografia da conta oficial do QGR no Instagram deve chegar perto, dizendo haver "mais de 70 mil QGRs em 70 países". O perfil tinha 33,5 mil seguidores até a publicação deste texto. A reportagem não conseguiu confirmar a existência dos encontros em outros países.
"O QGR surgiu no coração do Pablo"
Naquela terça, só quem tinha o nome na lista passava pela portaria do condomínio onde fica a casa que recebe as reuniões semanais. Marcado para as 19h, o encontro só começou depois das 20h em uma sala de estar ampla, com pé-direito duplo e piso de madeira encerada. Os participantes eram, em sua maioria, jovens casais, que também levaram os filhos pequenos. Volta e meia, uma fala era interrompida por um choro de bebê. "Precisamos criar logo o QGR Kids", brincou Arado.
Depois de duas horas de parábolas, depoimentos e orações — chamadas de "boot", reproduzindo o nome do processo de inicialização de um computador — todos foram para a área externa para um lanche colaborativo em frente à piscina.
Arado disse que Marçal se afastou do grupo, e não participa mais das reuniões desde a tentativa de se candidatar à Presidência em 2022. "O QGR surgiu no coração dele, mas hoje não tem mais nada a ver com o Pablo", afirmou.
Não foi o que declarou Noemi Carvalho, 63, que mora na casa onde ocorreu o encontro e diz participar da organização desde o início, há mais de dois anos. Ela conta que, quando Marçal divulgou o QGR em lives e publicações nas redes sociais, correu para abrir o dela. "Ele [Pablo] tem um dom, ele tem revelações. Ele é muito obediente, Deus fala e ele obedece. E por isso, Deus mostra a ele coisas que não mostra para outras pessoas", afirmou. "Ele fala e a gente faz."
Para ela, o QGR substituiu a igreja. "Eu nasci e cresci evangélica, na igreja tradicional metodista. Em 2022, minha mãe morreu e eu percebi que a igreja me fazia muito mal. O QGR é a alternativa", falou.
As digitais de Marçal também estão nos registros institucionais da organização: a titular do site do QGR, criado no final de 2021, é a Marçal Serviços Digitais LTDA, e "Quartel-General do Reino" é marca registrada de Marçal no Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) desde 2023.
Houve um evento do QGR chamado "Reino em Ação", marcado para o último dia 19, na sede da Plataforma Internacional, empresa de Marçal. Para adquirir o ingresso de R$ 97, o interessado era levado a uma página que mostrava que o encontro era oferecido por "Plataforma Digital de Desenvolvimento Humano", razão social da Plataforma Internacional, e tinha o email suporte@pablomarcal.com.br para atendimento ao cliente. O UOL tentou contato com a Plataforma Internacional por WhatsApp, telefone e email, questionando qual a relação da empresa com o grupo, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.
Apesar de haver eventos pagos, membros do QGR dizem que as reuniões são, em sua maioria, gratuitas. Como acontecem em locais privados, como casas ou escritórios dos integrantes, é preciso ser convidado para participar.
Para Marçal, religião é "lifestyle"
O primeiro emprego registrado na carteira de trabalho de Pablo Marçal é como técnico de som na Igreja Videira, em Goiânia, sua cidade natal, nos anos 2000. A denominação é uma das principais a usar o sistema de igreja em células, com reuniões nas casas dos fiéis, mesmo método do QGR.
Marçal, porém, costumava dizer que não era religioso, e que o cristianismo, para ele, era um "lifestyle". Em um trecho de vídeo que circula na internet, ele aparece dizendo que não voltaria a pagar o dízimo "nem a pau". "Aquilo que você acha que te faz prosperar faz você ficar [preso] a uma bola de ferro", fala.
O mesmo discurso, de que a igreja seria uma forma de conter a religiosidade, aparece em uma entrevista de Marçal à Rádio Jovem Pan Goiânia, em dezembro de 2021. "O religioso, ele tem o quartel-general dele lá no prédio da igreja, e ele acha que é um templo. Jesus derrubou o templo tem dois mil anos, não tem templo. Se você é general do reino, você tem um quartel-general, que é sua casa", diz.
A entrevista divulgava o evento "O Chamado do Reino", que aconteceu na capital goiana no dia seguinte. Foi nele que Marçal tentou fazer uma cadeirante voltar a andar com orações — sem sucesso.
Em agosto deste ano, Marçal disse se arrepender do incidente, mas que espera conseguir ressuscitar mortos um dia. "Eu já orei com dois mortos. Eu já fui no velório para ressuscitar pessoas. Eu acredito nisso, ainda vou ver isso. O fato de eu ser um fracassado ainda, porque as orações não funcionaram, não invalida que eu não vá conseguir", falou ao Flow Podcast.
Para Vinícius do Valle, sociólogo, cientista político e fundador do Observatório Evangélico, esses episódios reforçam a ideia de que Marçal se vê como uma forma de "messias". "Ele é muito persuasivo, é um comunicador muito bom, as pessoas o enxergam como modelo", falou. "Quando ele diz que vai orar para uma pessoa andar, que ele acha que vai fazer uma pessoa ressuscitar, certamente, a gente está falando de um componente messiânico, que remete a uma ligação direta com Cristo, capaz de operar milagres na Terra."
Disputa com Nunes por eleitor evangélico
As declarações do candidato em relação à religiosidade se suavizaram ao longo da campanha à Prefeitura de São Paulo.
Marçal disputa a preferência do eleitorado evangélico com o candidato à reeleição, Ricardo Nunes (MDB), mostram pesquisas do Datafolha. Na pesquisa divulgada no último dia 26, Marçal estava na liderança nesse segmento, com 30% das intenções de voto, empatado tecnicamente com Ricardo Nunes (MDB), que tem 29%. A margem de erro é de cinco pontos percentuais para mais ou para menos.
No final de setembro, o empresário fez uma reunião online com pastores, e se pôs como o único evangélico entre os candidatos. "Nunca na história de São Paulo um evangélico sentou na cadeira de prefeito", falou.
QGR pode ser considerado seita?
"Não dá para falar se o Quartel-General do Reino constitui nova religião ou igreja. É cedo para afirmar. Mas não existe dúvidas de que ele transforma o Pablo Marçal em uma liderança messiânica", disse o professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Guilherme Galvão, que estuda as relações entre os partidos e as igrejas evangélicas.
Para ele, Marçal usa a já comum estrutura de células da igreja evangélica para fins políticos. "O Pablo Marçal faz uma mistura de tudo: religião, discurso de coach de autoajuda, político", afirmou. "Ele consegue transformar isso em algo muito perigoso, porque, a partir do momento em que ele se torna marechal desse povo, ele pode instrumentalizar isso de acordo com o seu interesse."
Essas pessoas ficam muito suscetíveis, podem enxergar Marçal não só como coach e líder político, mas também como líder religioso, econômico, comportamental, moral.
Guilherme Galvão Lopes, historiador e professor da FGV
A antropóloga e professora da UFF (Universidade Federal Fluminense) Christina Vital diz que o termo seita pode ser usado no jogo político, mas não acredita que seja o mais preciso para falar do QGR. "Essa palavra carrega uma série de acusações morais às novas formas de organização evangélica, e não ajuda a entender esse fenômeno", disse. "[Essas organizações] são novas formas de experiência religiosa, que tem muito pouco controle institucional."
Para ela, Marçal e o Quartel-General do Reino ajudam a explicar o cenário atual do movimento evangélico no país. "Sempre fez parte do movimento pentecostal no Brasil a abertura de igrejas sem registro, núcleos de oração, pequenas igrejas em favelas e periferias, as igrejas chamadas de porta de garagem. Isso sempre aconteceu, e com o crescimento do evangelismo na internet, há essa descentralização institucional e uma dificuldade de regulação propriamente do que é o religioso", disse.
O Pablo Marçal e o que ele tem oferecido é parte de um processo muito maior de proliferação de um evangelismo não institucional nas redes sociais, centrado em lideranças híbridas, que são, ao mesmo tempo, exemplos de um certo tipo de vida empresarial, de sucesso familiar e também religioso.
Christina Vital, antropóloga e professora da UFF
A fala de Christina se relaciona com a briga entre Marçal e o pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo. Os dois se desentendem desde 2022, quando Marçal se candidatou à Presidência, e Malafaia publicou um vídeo criticando o Quartel-General do Reino.
Ao UOL, o pastor disse que o modelo é uma "heresia teológica". "Ele veio com uma pregação dizendo 'você não precisa de igreja, não precisa de pastor, você pode batizar, qualquer um pode batizar'. Esses são fundamentos da nossa fé", disse. "[No QGR] Você não precisa da Santa Ceia, não precisa dar dízimo, oferta; você não precisa fazer nada disso, só comprar os livros e cursos do Pablo Marçal."
Para Valle, o QGR tem alguns aspectos de seita, mas não pode ser classificado como tal. "Tem um componente de seita, de engajamento ativo em que o indivíduo se dissolve no grupo", disse. "Aquilo gera um pertencimento muito forte, preenche uma parte muito importante do indivíduo e captura sua psique."
No entanto, para ele, chamar o movimento de seita não seria correto. "Historicamente, chamar um movimento de seita é rebaixar uma manifestação de religiosidade, colocar o outro abaixo nessa hierarquia da espiritualidade", falou.
O que dá para a gente afirmar é que [o QGR] é um tipo de instituição muito particular, que está crescendo, se espalhando pelo Brasil e que realiza um culto à personalidade do Pablo Marçal.
Vinícius do Valle, sociólogo e fundador do Observatório Evangélico
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