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Como criança morta por leões em PE motivou debate sobre animais em circos

Retirada dos leões mortos do circo Vostok - Reprodução/Teresa Maia/Diário de Pernambuco
Retirada dos leões mortos do circo Vostok Imagem: Reprodução/Teresa Maia/Diário de Pernambuco
do UOL

Do UOL, em São Paulo

18/04/2025 05h30Atualizada em 19/04/2025 15h15

Em abril de 2000, o garoto José Miguel dos Santos Fonseca Júnior, 6, foi puxado para dentro de uma jaula e morto por leões do circo Vostok, em Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife. A morte de Miguel levantou uma discussão sobre a utilização de bichos como entretenimento em circos no Brasil.

O que aconteceu

Lei foi aprovada após morte de José Miguel. Pernambuco se tornou o primeiro estado do Brasil a proibir shows do gênero. Em maio de 2001, a lei 377/2000 foi aprovada na Assembleia Legislativa do estado. "Fica proibido em todo estado de Pernambuco a utilização de animais ferozes, de grande, médio ou pequeno porte, em espetáculos públicos de qualquer natureza, especialmente os circenses e teatrais", diz o texto.

Ainda não há uma lei nacional que regulamente a prática. Mais de 25 anos após a tragédia, o debate esfriou e ficou restrito a alguns estados. Além de Pernambuco, apresentações com animais em circos também foram proibidas em Alagoas, Paraíba, Goiás, Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Espírito Santo e Minas Gerais.

Tema não andou na Câmara dos Deputados. Desde 2000, o uso de animais em espetáculos circenses já foi tema de mais de 30 projetos de lei, dos quais 19 estão em tramitação no legislativo brasileiro. Quase todos querem proibir a prática.

Dois projetos foram apresentados em fevereiro de 2025. O PL 438/2025, do deputado Felipe Becari (UNIÃO- SP), quer proibir a apresentação ou uso de animal em espetáculos de circo, teatro e musicais. Por outro lado, o PL 100/2025, do Capitão Augusto (PL-SP), prevê a permissão do uso de animais em circos, mediante regras rígidas de bem-estar animal.

O deputado Capitão Augusto critica a proibição total do uso de animais em circos, realizada por alguns estados. "Embora bem-intencionada, [a proibição] eliminou uma tradição histórica. Sem considerar que o problema principal não é a presença dos animais, mas sim os maus-tratos." O projeto, argumenta o deputado do PL, propõe um modelo de regulamentação responsável, em que apenas circos que tratem adequadamente seus animais possam utilizá-los em espetáculos.

"Com isso, busca-se equilibrar a proteção animal com a liberdade cultural e econômica dos circos, garantindo que essa forma de arte e entretenimento possa coexistir com o respeito à vida animal", acrescenta.

Proibição em alguns estados foi vitória para a família de Miguel

Pai da vítima rodou o Brasil com ONGs. Após morte do filho, o taxista José Fonseca, hoje com 59 anos, considera uma vitória para a família conseguir a proibição de apresentações de animais em espetáculos em Pernambuco e em outros estados do Brasil. "Eu rodei o Brasil com ONGs após a morte do meu filho, minha vontade era de evitar que acontecesse o mesmo que ocorreu com meu filho, conseguimos a proibição em alguns estados. Me sinto feliz com essa vitória", lembrou.

Vida da família seguiu, mas assunto ainda é doloroso. Procurado pelo UOL, José Fonseca afirmou que ele e a família decidiram há anos não falar mais publicamente sobre o tema. "É muito doloroso, porque por trás da tragédia existe a vida quem ficou, que foi a minha filha que presenciou tudo, precisei tomar essa decisão", afirmou.

"Meu filho não foi a única vítima", diz. O taxista contou que montou um dossiê nos anos 2000 com vários casos de morte em decorrência de ataques de animais silvestres em circos no Brasil. "Já tinham acontecido seis mortes antes da do meu filho. Famílias me procuravam porque eu fui em alguns programas de televisão". Ele detalha que foi convidado, inclusive, para um movimento internacional contra a apresentação de animais em circo, mas não aceitou. "Eu tinha minha vida, dependia do meu trabalho", ressaltou.

A irmã de José Miguel só tinha três anos quando viu o irmão ser atacado pelos leões. "Ela fez tratamento para seguir a vida dentro da normalidade e hoje está bem", resumiu o taxista, que diz ainda ser reconhecido pela tragédia por passageiros que entram no seu carro.

Relembre o caso

A tragédia do circo Vostok - Reprodução/Folha de Pernambuco - Reprodução/Folha de Pernambuco
A tragédia do circo Vostok
Imagem: Reprodução/Folha de Pernambuco

Dia se transformou tragédia. O que parecia ser um domingo tranquilo em família se tornou em tragédia poucas horas depois. Há 25 anos, no início da noite, as apresentações do circo corriam bem, até que os organizadores anunciaram um intervalo. No microfone, convidaram pais e crianças para uma sessão de fotos com cavalos e pôneis por trás do picadeiro.

Havia cerca de 3.000 pessoas no circo. Arquibancadas e camarotes estavam lotados. Centenas de famílias decidiram levar as crianças para tirar as fotos, incluindo José Fonseca, pai de José Miguel, que era conhecido como Juninho.

Criança foi atacada por leões. Na volta da sessão de fotos, Juninho, seu pai e sua irmã passaram ao lado da jaula dos leões. Os cinco animais estavam no picadeiro para a próxima apresentação. Um dos bichos, de 220 kg, conseguiu colocar a pata para fora da jaula e puxou a criança. As grades envergaram. Os leões atacaram o garoto e o arrastaram para um túnel. Ele foi mordido em várias partes do corpo e não resistiu aos ferimentos.

Ataque foi presenciado pelo público e pela família. Quando a plateia percebeu que a criança estava sendo devorada pelos leões, o sentimento foi de desespero. Cadeiras e garrafas foram atiradas no picadeiro. O público corria tentando encontrar a saída do circo. No microfone, os organizadores do evento pediam calma. Alguns minutos depois, um boato de que os leões haviam fugido se espalhou, causando mais pânico nas pessoas.

O garoto passou a um metro do local. O perito José Nemésio de Sena, do Instituto de Criminalística, afirmou à Folha de S.Paulo que a jaula deveria estar protegida por uma cerca para evitar a aproximação de pessoas.

O garoto José Miguel dos Santos Fonseca Júnior., 6 de anos, foi atacado e morto em 9 de abril de 2000 por leões do circo Vostok - Reprodução - Reprodução
O garoto José Miguel dos Santos Fonseca Júnior., 6 de anos, foi atacado e morto em 9 de abril de 2000 por leões do circo Vostok
Imagem: Reprodução

Polícia foi acionada e matou quatro dos cinco leões. Os agentes da Polícia Militar inicialmente mataram a tiros dois leões. Cerca de uma hora depois, outros dois animais que haviam sido isolados foram mortos porque arrebentaram a jaula onde estavam e tentaram devorar o corpo da criança.

Necropsia não encontrou carne no estômago dos animais. Os bichos foram necropsiados na UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco). À época, especialistas afirmaram aos jornais locais que não havia nada no estômago dos animais, indicando que eles não comeram a carne da criança. Em depoimento à polícia, o domador Claudinei Pires da Rocha declarou que os animais comeram 10 kg de frango cada um no dia do acidente.

Apenas um leão sobreviveu. O animal tinha quatro meses. Ele foi transferido para o Zoológico de Dois Irmãos, no Recife, onde foi batizado como Léo. O animal viveu por 21 anos e morreu de câncer em 2021.

Indenização caiu de R$ 1 milhão para R$ 275 mil

Os quatro leões foram necropsiados na Universidade Federal Rural de Pernambuco - Reprodução - Reprodução
Os quatro leões foram necropsiados na Universidade Federal Rural de Pernambuco
Imagem: Reprodução

A investigação apontou que houve negligência e falta de segurança do circo. A Polícia Civil indiciou o dono do circo, Alexandre Vostok, e dez funcionários dele, sob acusação de homicídio culposo, sem intenção de matar. Das onze pessoas indiciadas, nove integravam a equipe encarregada de impedir a aproximação de espectadores da jaula no picadeiro. Um dos indiciados foi o domador Claudinei Pires da Rocha. Ninguém foi preso.

Falha humana. Ainda segundo o perito José Nemésio de Sena, os vãos entre as barras de ferro, de 10 cm, deveriam ser menores para não permitir a passagem das patas dos leões. O especialista avaliou na época que as grades não poderiam ter cedido. A perícia constatou que, com a força do animal, as barras abriram 6 cm, o que permitiu ao leão forçar a passagem do corpo de José Miguel por esse espaço.

O inquérito não comprovou maus-tratos aos animais e nem que eles estivessem famintos. O resultado da investigação também não impediu o funcionamento do circo Vostok, que continuou se apresentando.

A Justiça de Pernambuco condenou o circo e a empresa contratante a pagarem R$ 1 milhão em indenização à família. O caso foi para o STJ (Superior Tribunal de Justiça) e o valor caiu para R$ 275 mil por danos morais e materiais. Na decisão, os ministros entenderam que as empresas foram "imprudentes" e que as instalações do circo eram "precárias".

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