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Sociólogo lança livro em Paris sobre relações familiares no contexto da Amazônia brasileira

19/04/2024 09h11

O sociólogo, professor e escritor José Henrique Bortoluci lança, em Paris, o livro "O que é meu", uma história sensível sobre a própria família, em que narra as viagens do pai, que trabalhou como caminhoneiro durante 50 anos, e as mudanças e sentimentos gerados depois que ele foi acometido por um câncer de intestino. A publicação já foi traduzida em mais de 10 idiomas.

José Bortoluci, conhecido como Didi, é o pai do autor, José Henrique Bortoluci, e um dos personagens principais desse livro, que mistura autobiografia e pesquisa científica, uma literatura de não ficção. "O que é meu", lançado agora na França com o título "Ce qui m'appartient" reproduz as conversas entre pai e filho, mas trata também de temas universais. Tendo desbravado toda a região a região Norte do Brasil, as andanças de seu Didi abrem espaço para discussões sobre o desmatamento da Amazônia, o avanço do garimpo e a situação dos povos indígenas.

Nascido e criado em Jaú, no interior de São Paulo, o autor conta, de forma bastante sensível, o momento de sua partida para os Estados Unidos para fazer um doutorado. Ele descreve que calculou com o pai a distância de Jaú até Michigan. E escreveu:

"Meu pai não entende nada do mundo universitário, ele tem uma vaga ideia do que é defender uma tese. Por outro lado, as distâncias ele conhece bem".

Bortoluci acredita que o livro foi uma oportunidade para construir "estradas e pontes" entre a experiência dele e a experiência de vida do pai.

"Somos da mesma família, o que nos coloca em uma mesma posição de classe social, que é um tema fundamental no meu livro, mas são vidas que vão se tornando cada vez mais diferentes, conforme eu vou ficando mais velho, vou estudando e me torno professor. Ele foi caminhoneiro por 50 anos, dirigiu em todo o território brasileiro, então o livro também é uma tematização sobre as distâncias sociais e as formas de aproximação", detalha.

Mobilidade social

Bortoluci explica que a família tinha recursos bem limitados, vivia apertada com as contas que venciam a cada mês, e que os pais tiveram pouco estudo. Ele, pelo contrário, conseguiu quebrar essas barreiras e conquistar um doutorado em uma universidade norte-americana. E essa é uma das grandes questões que ele enfrenta neste seu primeiro livro.

"Pessoas que passam por esse processo de mobilidade social, que vivem vidas muito diferentes em termos de classes sociais, de acesso à educação, à renda, quando comparado aos seus pais, vemos que vivemos uma vida um pouco dividida, entre a realidade atual e a realidade passada, entre uma classe social e outra, e linguisticamente dividida. Eu mantive os meus registros e o registro oral do meu pai, já que o livro é amplamente baseado em uma série de entrevistas que eu fiz com ele no começo de 2020", revela o sociólogo.

O autor conta ainda que o momento é bastante propício para se debater o tema. Questionado sobre uma tese da escritora francesa e prêmio Nobel de Literatura, Annie Ernaux, de que ascender socialmente vem acompanhada de um sentimento de traição com a classe que ficou para trás, ele discorda e fala do seu sucesso escolar como um "empreendimento familiar".  

"Acho que o termo traição não faz jus a todas essas experiências, inclusive porque ele é um pouco moralizante. Mudar de classe social leva a clivagens, a dúvidas, a dores, mas também a orgulho, a confraternização conjunta. E o que eu quis com essa frase, que também está no livro, que o meu sucesso acadêmico era um empreendimento familiar, era para mostrar que a gente não faz nada sozinho", opina.

Preservação da Amazônia

"Eu tinha a certeza de que quando eu entrasse nas histórias do meu pai, a Amazônia teria um papel muito importante, porque a maioria das histórias que eu ouvia quando criança tinha se passado na Amazônia, principalmente nos anos 1970, em um processo de expansão das rodovias do qual meu pai foi parte comum dos trabalhadores, o que também significou uma aceleração da devastação da Amazônia", relembra Bortoluci, acrescentando que o projeto da Transamazônica, que se aprofundou durante a ditadura militar e foi continuado durante a democracia brasileira, foi responsável pela perda de quase 20% da floresta.

O autor opinou sobre o atual governo e a importância dada à proteção desse ecossistema. Para Bortoluci, com o novo governo é possível voltar a pensar a Amazônia como algo que tem futuro.

"Passamos por um período em que oficialmente a política era a da devastação. Mas o futuro da Amazônia ainda está muito em jogo. Vimos que os números do desmatamento diminuíram, mas isso é só o início. Não acho que esta é uma questão que um governo só vai resolver. É algo que tem que estar no centro sobre que tipo de país nós queremos ser. E ainda não está".

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Tradução em mais de 10 idiomas

"O que é meu" foi traduzido em mais de dez idiomas e está sendo lançado em diversos países. Bortoluci conta que não esperava tamanha repercussão.

"O livro surgiu de um desejo muito grande da minha parte, de ouvir com atenção as histórias do meu pai. Isso aconteceu num momento de muita delicadeza, porque foi durante a pandemia de COVID-19 e quando meu pai teve um diagnóstico de câncer. Ele acompanhou todo o processo de escrita e faleceu no fim do ano passado, quando o livro já tinha sido publicado no Brasil e ele sabia que seria publicado em vários lugares", recorda o escritor.

"Meu segundo desejo era escrever uma história literária. Não havia nenhuma imaginação sobre esse livro ter uma vida fora do Brasil. Surgiu realmente do encontro desses dois desejos. Então foi uma alegria muito grande quando editoras no exterior passaram a se interessar por essas histórias, que são muito pessoais, da vida de um trabalhador das estradas, mas que tocam em interesses que vão além do privado", finalizou José Henrique Bortoluci.

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