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Triângulo de Hess: a menor - e mais rebelde - propriedade privada de Nova York

Este pequeno triângulo é considerado símbolo da rebeldia de Nova York - Olivier Guiberteau/BBC
Este pequeno triângulo é considerado símbolo da rebeldia de Nova York Imagem: Olivier Guiberteau/BBC

Olivier Guiberteau

03/06/2019 11h00

Nova York pode ser famosa pelos arranha-céus, mas o símbolo de rebeldia da cidade se encontra no meio da rua - mais precisamente, na calçada de uma tabacaria no bairro Greenwich Village, em Manhattan.

"Obviamente, não é a Estátua da Liberdade, mas para os nova-iorquinos, é uma parte estimada e valorizada da paisagem urbana", diz Andrew Berman, presidente da Sociedade para Preservação Histórica de Greenwich Village.

As charmosas ruas do bairro nem sempre seguem o traçado do "sistema de grade" da cidade (com ruas e avenidas se entrecortando perpendicularmente): na verdade, três vias se encontram aleatoriamente em frente ao número 110 da Sétima Avenida.

À primeira vista, parece um cruzamento banal de Nova York. Táxis amarelos passam apressados pelo Starbucks do lado oposto à tabacaria Village Cigars, enquanto a torre do One World Trade Center desponta ao sul.

Em uma cidade que naturalmente nos faz olhar para o alto, um pequeno mosaico triangular na calçada, localizado a menos de 1 metro da porta da tabacaria, poderia passar despercebido.

Composto por ladrilhos desbotados, o triângulo mede aproximadamente 0,19 metros quadrados. Nele, está escrito: "Propriedade dos Hess, que nunca foi destinada a fins públicos". Uma mensagem enigmática que faz alusão a uma história que "representa a luta pela identidade pessoal nesta área", acrescenta Berman.

O Greenwich Village sempre foi um pouco diferente: "alternativo, progressista e dinâmico", nas palavras de Berman. No fim do século 19, o bairro era uma das áreas com maior diversidade cultural da cidade.

Mas, em 1910, o cenário era bem diferente. A Sétima Avenida, que hoje corta toda a extensão de Manhattan, terminava a quase 1,6 quilômetros ao norte do Greenwich Village. Sem o tráfego da movimentada avenida, a região parecia mais calma e intimista.

O Triângulo de Hess está localizado na calçada de uma tabacaria no bairro Greenwich Village - Olivier Guiberteau/BBC - Olivier Guiberteau/BBC
O Triângulo de Hess está localizado na calçada de uma tabacaria no bairro Greenwich Village
Imagem: Olivier Guiberteau/BBC

No lugar do enigmático triângulo, ficava um prédio residencial construído pelo americano David Hess, que havia falecido três anos antes, em 1907. Em mapas do fim do século 19, o prédio aparece marcado com o nome Vorhes, e também com seu número de lote, 55.

O início do século 20 foi uma época de profundas mudanças na cidade. A recém-inaugurada Pennsylvania Station, com seu túnel de trem sob o Rio Hudson, passou a levar um grande número de passageiros diretamente para o coração de Manhattan.

A ideia era estender tanto a Sétima Avenida quanto a linha de metrô que ficava abaixo dela em direção ao sul, a fim de melhorar as conexões entre a Baixa Manhattan (Lower Manhattan) e o centro da cidade, os dois principais polos comerciais de Nova York.

Um artigo do jornal The New York Times de outubro de 1913 informava que 253 construções seriam derrubadas para acomodar a avenida. E um dos prédios que estavam destinados à demolição era o edifício Vorhes.

A cidade de Nova York reivindicou o chamado "domínio eminente" para desapropriar os imóveis - este recurso, previsto na Quinta Emenda à Constituição dos EUA, determina que "o governo tem o direito de usar a propriedade privada de alguém para fins públicos", como a construção de estradas ou escolas, conforme explica o advogado Jonathan Houghton, representante do escritório de advocacia Goldstein Rikon Rikon & Houghton PC, um dos mais antigos da cidade, especializado em desapropriação de propriedades e domínio eminente.

No início do século 20, Nova York decretou uma ordem de domínio eminente para ampliar a Sétima Avenida até o Greenwich Village - Olivier Guiberteau/BBC - Olivier Guiberteau/BBC
No início do século 20, Nova York decretou uma ordem de domínio eminente para ampliar a Sétima Avenida até o Greenwich Village
Imagem: Olivier Guiberteau/BBC

Irritada com o que considerava abuso de poder, a família Hess bateu o pé e se recusou a vender a propriedade. Nos anos seguintes, lutou bravamente contra a decisão, mas "impedir uma ação de domínio eminente em Nova York é extraordinariamente difícil", afirma Houghton.

Em 1913, a família havia esgotado todos os recursos legais.

O prédio foi demolido pouco tempo depois - e a ampliação da Sétima Avenida acabou passando exatamente pelo local onde ficava o lote 55.

Esse poderia ter sido o fim da história.

Mas, se você observar bem de perto os mapas da cidade de 1916, vai ver um pequeno ponto triangular que permaneceu no lote 55.

"Um ponto muitas vezes ignorado porque havia sobrado muitos pequenos lotes de tamanho irregular após a destruição - mas o Triângulo de Hess era o menor", diz Berman.

O prédio não existia mais, mas um erro de levantamento topográfico indicava que uma parte do lote 55 tinha sobrevivido e ainda era legalmente propriedade dos Hess.

O que aconteceu a seguir não é totalmente claro. A principal versão diz que, ao perceber o erro, a cidade solicitou que a família Hess doasse o pequeno lote, assumindo que um pedaço tão pequeno de terra não teria valor comercial. Mas novamente os herdeiros se recusaram.

O caso voltou ao tribunal, mas desta vez a família saiu vitoriosa, e a cidade de Nova York teve que reconhecer seu direito legal ao pequeno triângulo.

No entanto, um artigo publicado no The Philadelphia Evening Ledger, em 29 de julho de 1922, contradiz essa versão.

O texto afirma que no ano anterior a cidade de Nova York havia solicitado aos herdeiros de Hess que pagassem os impostos acumulados referentes ao restante do lote. Mas Frank Hess, filho de David, alegou não ter conhecimento de que parte do lote ainda estava no nome da família.

O que se sabe é que em 26 de julho de 1922 o mosaico foi instalado. No dia seguinte, um artigo do New York Times dizia que o triângulo fora "avaliado nos livros fiscais por US$ 100", se referindo provavelmente ao imposto anual da propriedade.

Após visitar o lote, Frank negociou um contrato de locação com a Village Cigars, incluindo a exigência de que o terreno fosse marcado como propriedade privada.

Em 1938, o Triângulo de Hess acabou sendo vendido à tabacaria por US$ 1 mil - valor que, ajustado pela inflação, equivaleria hoje a cerca de US$ 17,5 mil.

Ele se mantém até hoje no local preservado exatamente como era.

Mais de 80 anos depois, os capítulos desta história começaram a se confundir; algumas versões afirmam erroneamente, por exemplo, que o próprio David Hess lutou contra o governo da cidade de Nova York.

No entanto, o Triângulo de Hess vai muito além da história de sua origem - se transformou em um símbolo de rebeldia.

Segundo Berman, é o "emblema de um indivíduo que desafia a prefeitura e, dentro das suas limitações, vence".

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New York Times

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