Desde 31 de julho de 2020, os seriados "Chaves" e "Chapolin" estão fora da programação diária da TV aberta do Brasil —em uma verdadeira "novela mexicana" cheia de idas e vindas. O mais recente desdobramento é que, mesmo após obter o aval da Televisa (responsável pela distribuição mundial dos programas), o SBT adiou o retorno dos clássicos. Agora, o atraso seria devido a um pedido de suas próprias afiliadas, o que a emissora nega.
Essa longa história —que não é de humor— começou ainda em 2000, quando Roberto Gómez Bolaños, que é o criador dos personagens, assinou o que viria a ser o seu último contrato com o conglomerado de mídia de sua terra natal. A seguir, esta coluna de Splash explica todos os percalços da trama.
A família de Chespirito x Televisa
Os esquetes e programas de Chapolin e Chaves foram produzidos entre 1970 e 1993. Do México, os humorísticos conquistaram uma legião de fãs pelo mundo, inclusive no Brasil e no restante da América do Sul, além da comunidade latina dos Estados Unidos.
Enquanto Chespirito —apelido pelo qual Bolaños ficou mundialmente conhecido— manteve para si os direitos intelectuais de suas criações, incluindo os personagens, a Televisa é a dona dos programas. "Um tem a imagem e o outro tem o acervo físico", explica Renan Garcia, que é roteirista, especialista no assunto e responsável pelo canal Vila do Chaves no YouTube.
Em 1º de agosto de 2000, foi firmado um acordo em que o humorista cedeu sua obra ao conglomerado mexicano por 20 anos. Em entrevista recente ao programa La Saga, Florinda Meza —intérprete de Dona Florinda e viúva de Bolaños— revelou que o valor desse contrato foi de US$ 5 milhões, apenas metade do valor que a TV Globo teria oferecido alguns anos antes. "Roberto era extremamente fiel à Televisa", relembrou a atriz. Ajustado pela inflação, a cifra seria hoje equivalente a US$ 9,1 milhões, ou cerca de R$ 52 milhões no câmbio atual.
O valor é considerado baixo. Segundo a Forbes, em reportagem publicada em 2012, os 1.300 episódios produzidos por Chespirito haviam rendido US$ 1,7 bilhão em taxas de distribuição desde 1992 até aquele momento. Atualizado, o montante chega a US$ 2,3 bilhões, ou R$ 13,3 bilhões. A revista ainda afirma que a soma não inclui US$ 24 milhões (R$ 138 milhões) anuais provenientes de merchandising e licenciamento de produtos. Na época, a informação foi desmentida.
O humorista morreu em 2014, aos 85 anos. Por isso, coube ao Grupo Chespirito negociar a renovação em 2020. Sob a liderança de Roberto Gómez Fernández, filho do autor, os herdeiros endureceram o discurso. "A Televisa oferece muito pouco", chegou a afirmar Florinda na mesma entrevista de 2023.
Com o impasse, a distribuição de "Chaves" e "Chapolin" foi interrompida em todo o mundo. Um porta-voz do SBT confirmou para esta coluna que, na época, tinha um contrato que garantia as produções por tempo determinado, mas foram avisados de que "os direitos incidentes sobre o conteúdo retornaram à família" e, por isso, precisavam tirar a atração do ar. O mesmo ocorreu com o canal pago Multishow (do Grupo Globo) e o streaming Amazon Prime Video, que contavam com os humorísticos em seus catálogos. Assim começava o "blecaute" no Brasil.
Apenas os fãs mais inveterados, por meio de seus acervos particulares, passaram a ter acesso a esses clássicos da televisão mundial. Ou quem recorreu à pirataria.
"Prejudicou muito aquele fã que não via há um bom tempo e dizia: 'Que saudade! Quanto tempo eu não vejo. Deixa procurar aqui para assistir. Para onde que eu vou? Não está em lugar nenhum?'", reflete Garcia. "A pessoa depois de um tempo têm outras coisas para fazer, ela não vive pesquisando coisas de "Chaves" só para matar uma saudade. Ela simplesmente esquece, não volta mais e [a produção] perde aquele público."
Fim do período fora do ar
Foram mais de quatro anos de negociações até que, em setembro deste ano, um acordo foi finalmente anunciado, mas sem detalhes sobre os valores envolvidos. Ao serem procurados para dar esclarecimentos adicionais, tanto a Televisa quanto o Grupo Chespirito não responderam até o fechamento deste texto.
Questionado, o porta-voz do SBT informou que não se envolveu no acerto e que não tem conhecimento de quais são os novos termos.
"A parte financeira deve ter sido o que mais pesou", acredita Renan Garcia. Para ele, ambos os lados estavam deixando de arrecadar por conta do imbróglio. Isso ficou claro, entre outros fatores, pelo sucesso da exposição sobre Chaves realizada em São Paulo em 2024. "Olharam e falaram: 'Pô, esse é um produto que rende muito'".
Com o impasse resolvido, as séries puderam retornar ao Brasil. Questionado sobre o processo e se a longa relação com os mexicanos contribuiu para a nova negociação, o porta-voz limitou-se a afirmar que "como é sabido, o SBT tem uma parceria duradoura com a Televisa". A emissora confirma que detém exclusividade de exibição no nosso país. O acerto também inclui o serviço de streaming gratuito do grupo, o +SBT, onde já foram disponibilizados 20 episódios para o público.
Todavia, isso não impediu que o próprio grupo mexicano lançasse o Las Estrellas —que traz "Chaves" diariamente no áudio original em espanhol— no nosso país, por meio da distribuição na plataforma de streaming de TV chamada Zapping.
Enquanto isso, o canal aberto fundado por Silvio Santos adotou uma estratégia diferenciada. Tanto "Chaves" quanto "Chapolin" foram exibidos de forma especial nos feriados de 12 de outubro e 2 de novembro, transformando os relançamentos em grandes eventos. Em ambas as oportunidades, os seriados chegaram a figurar na vice-liderança de audiência, perdendo apenas para a Globo.
Dublagem brasileira
Outra questão, envolvendo particularmente o Brasil, é a dublagem. O sucesso de "Chaves" e "Chapolin" no Brasil deve-se, em boa parte, ao processo de localização em português, iniciado na década de 1980. Desde então, alguns dos dubladores originais já morreram, incluindo Marcelo Gastaldi —a primeira e mais icônica voz de Chespirito em português.
Entre os fãs, veio o receio de que novos impasses em relação a estes direitos pudessem inviabilizar a volta dos seriados. Nelson Machado, voz brasileira do Quico, chegou a afirmar via YouTube que havia um "início de processo" depois que o SBT deixou de ratificar um novo acordo com os dubladores. Um conflito entre as partes poderia, em última instância, exigir uma nova localização dos episódios, com novos intérpretes na língua de Machado de Assis.
Para esta coluna, o SBT afirma que o atual contrato com os dubladores é de 2012 e que a "renovação se dá de forma automática". "Por enquanto, não vamos redublar. Não temos processos em andamento versando sobre o tema", garantiu a emissora por meio de seu porta-voz.
Chama a atenção o uso da expressão "por enquanto".
A polêmica da IA
Este ainda não foi o desfecho da novela mexicana. Na primeira exibição após o retorno, os espectadores do SBT puderam reconhecer as mesmas vozes de sempre, mas notaram uma diferença na qualidade das imagens. Com o uso de inteligência artificial, houve um aprimoramento nos episódios, alguns com mais de 50 anos, originalmente gravados em fitas magnéticas e em um ambiente de baixo orçamento.
A iniciativa partiu do próprio canal brasileiro e não ocorre no México ou em outros países. Em entrevista ao site NaTelinha, Alfonso Aurin, que é diretor de Tecnologia e Operações do SBT, afirmou que para esse processo foi utilizado o programa Topaz Labs em um computador com duas GPUs (chips de processamento gráfico). "Para melhorar a experiência do público, foram usados recursos que corrigem distorções típicas do registro analógico em fitas. Na época, era comum o uso de vídeo-tapes, que se degradavam com o tempo, gerando ruídos, rotação de fase e outras instabilidades", comentou o executivo.
Contudo, Renan Garcia, na posição de fã e profissional do meio, levanta questões sobre a medida:
Eu entendo super que o SBT quer dar uma modernizada para as novas gerações, para os novos aparelhos de televisão. Por outro lado, não foi filmado em película e há limitações sérias. Em alguns momentos melhora uma coisa ou outra, e até vai, mas o grande problema da IA que estão aplicando —não sou um grande entendido do assunto, mas por tudo que eu tenho visto— é que estão colocando meio que no 'modo aleatório', sem corrigir as imperfeições, sem fazer com cuidado, de uma forma mais delicada e, muito provavelmente, mais demorada, o que gerou várias anomalias na imagem. Renan Garcia, do canal Vila do Chaves do YouTube
Para o criador de conteúdo, as modificações estão, em alguns momentos, causando distorções que podem impactar a experiência do espectador. "Se é assim, para que mexer? A gente tinha esses episódios, exibidos desse mesmo jeito, até 2020. O que mudou tanto assim em quatro anos?".
A volta ao nosso dia a dia
Tudo certo, mas nada resolvido. É que surgiu uma última peça nessa intrincada história.
Depois das duas exibições especiais, o SBT agendou o retorno de "Chaves" para a grade diária da TV aberta para a próxima segunda-feira (18), a partir das 18h30, fazendo parte de uma nova programação. Contudo, nesta terça (12), a emissora voltou atrás na decisão, cancelando a volta definitiva dos humorísticos. "Chirrión", como diz a fala de um famoso episódio de "Chapolin".
De acordo com o colunista Gabriel Vaquer, da Folha de S.Paulo, isso ocorreu porque as afiliadas teriam preferido manter as versões locais do Tá Na Hora no final de tarde. Com a mudança, o policialesco cederia parte do seu tempo para a produção mexicana.
Para este colunista, o SBT negou a informação: "A decisão já tinha sido tomada antes do encontro da rede, que ocorreu ontem [terça]. A nova grade foi adiada para dar tempo de divulgação e ajuste de formato da linha de shows". Por enquanto, essa retomada segue sem data.
Como vimos, só há mesmo um lugar do qual as criações de Chespirito nunca poderão ser retiradas: do coração e da memória de seus fãs. De resto, é sempre bom ficar atento às linhas pequenas do contrato. "Chirrín".
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