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Saia, maquiagem: igrejas usam a Bíblia para guiar aparência de mulheres

Igrejas doutrinam suas fiéis a como se vestir e restringem acessórios e maquiagem - Getty Images
Igrejas doutrinam suas fiéis a como se vestir e restringem acessórios e maquiagem Imagem: Getty Images
do UOL

Maurício Businari

Colaboração para o UOL

06/12/2024 05h30

A Bíblia é um dos textos mais influentes da história e molda, até hoje, normas de conduta para mulheres, como exemplo, igrejas conservadoras que doutrinam suas fiéis a usar saia, cabelos longos e restringir a maquiagem.

Especialistas afirmam que essas normas se tornaram impositivas a partir da interpretação e do contexto cultural em que foram analisadas.

O que aconteceu

O conteúdo da Bíblia influenciou valores e normas de comportamento, especialmente em relação ao papel e à aparência das mulheres. Para a professora Stella Christina Schrijnemaekers, da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo, é a interpretação ao longo dos séculos que transformou o texto sagrado em normas de conduta. "A Bíblia, enquanto texto, não define normas absolutas; essas normas emergem da leitura de cada sociedade e época", observa a professora, que vê nas interpretações bíblicas um reflexo das relações de poder de cada tempo.

O contexto cultural da época moldou os códigos de vestimenta descritos na Bíblia. No Novo Testamento, o apóstolo Paulo recomenda que as mulheres se vistam "modestamente, com decência e discrição", refletindo as convenções de sua sociedade patriarcal. Para o teólogo Rodrigo Moraes, "Paulo tinha preocupações com a reputação da comunidade cristã, que vivia numa sociedade com costumes rígidos. As orientações bíblicas, como o uso do véu, refletem o contexto e, por isso, não devem ser impostas hoje sem considerar o que mudou".

O uso do véu na Bíblia reforça valores de respeito e submissão feminina. Em 1º Coríntios, Paulo escreve que a mulher que ora sem cobrir a cabeça "desonra a sua cabeça". Algumas tradições religiosas ainda seguem esse ensinamento, mantendo o véu como símbolo de respeito, numa prática que também reflete valores de modéstia e submissão.

A Bíblia traz mensagens sobre a beleza feminina. Em 1º Pedro, por exemplo, a beleza feminina é descrita como algo que deve vir "de dentro, num espírito dócil e tranquilo". Esse conceito é reafirmado em Provérbios 31:30: "Enganosa é a graça, e passageira é a beleza; mas a mulher que teme ao Senhor, essa será louvada".

Algumas passagens bíblicas incentivam a beleza interior ao invés de adornos externos. Em 1º Timóteo, Paulo orienta que as mulheres evitem "tranças, ouro e pérolas", valorizando uma "modéstia centrada em boas obras". Esse conceito reforça a virtude feminina como algo além da aparência e expressa um ideal de pureza e devoção.

Limites legais

A liberdade religiosa não deve ultrapassar os direitos fundamentais das mulheres. Segundo a advogada Antília dos Reis, o direito pode intervir em práticas religiosas que ultrapassem os direitos fundamentais das mulheres.

A Constituição Federal assegura a igualdade de gênero e proíbe discriminações baseadas em sexo ou religião. Além disso, a Lei Maria da Penha e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) protegem as mulheres de práticas coercitivas, garantindo a liberdade de escolha sobre suas vestimentas. Nenhuma doutrina ou tradição pode violar o direito à dignidade e liberdade das mulheres, afirma a advogada.

Apesar de existirem leis que protejam a mulher de abusos desse tipo, as normas bíblicas continuam a influenciar a sociedade brasileira além do contexto religioso. Claudia Neves da Silva, autora do artigo 'A Legitimação da Subalternidade da Mulher no Cristianismo e no Islã' (2023), argumenta que as doutrinas religiosas mantêm forte coesão social. Esses valores, como modéstia e recato, ainda moldam as expectativas de "bom comportamento" feminino na sociedade.

A pluralidade de interpretações bíblicas reflete a diversidade cultural e religiosa. No Brasil, alguns grupos mantêm padrões mais rígidos de vestimenta e comportamento, enquanto outros optam por uma leitura mais flexível. Para Schrijnemaekers, essa pluralidade "reflete as relações de poder e preferências culturais" de cada época.

"Vestir-se é uma construção social, cultural, histórica e econômica", ressalta a professora. "O que é decoro ou modéstia varia segundo o tempo e os grupos sociais que interpretam esses conceitos. Por mais que as pessoas afirmem que se apoiam unicamente na Bíblia, ela é um texto que permite interpretações distintas; as normas de conduta que dela surgem refletem as tensões e os valores de cada sociedade".

Vaidade é pecado?

O teólogo Rodrigo Moraes avalia que o entendimento sobre o que é apropriado ou não varia conforme a interpretação do livro, o que faz a Bíblia permanecer viva para diferentes contextos. "Por mais que as pessoas afirmem que se apoiam unicamente na Bíblia, é a interpretação que transforma as normas em realidade cultural", conclui o teólogo.

Sobre vaidade, especialmente em relação ao comportamento das mulheres ao se arrumarem, o teólogo explica que "a Bíblia ensina a valorização da modéstia e da moderação". O foco está mais na intenção do coração e nos excessos do que nos atos de se arrumar, maquiar ou cuidar da aparência. Ele destaca a passagem bíblica de 1º Pedro 3:3-4: "A beleza de vocês não deve estar nos enfeites exteriores, como cabelos trançados e joias de ouro ou roupas finas'. Ao contrário, que esta beleza esteja no ser interior, que não perece, beleza demonstrada em um espírito dócil e tranquilo, o que é de grande valor para Deus". O teólogo acredita que o texto enfatiza o valor do caráter e da pureza de coração, e não necessariamente as roupas ou marcas de grife.

Ele esclarece que a Bíblia não condena o cuidado com a própria imagem, desde que não se transforme em obsessão ou culto ao ego. "O pecado estaria mais relacionado ao culto ao próprio ego ou à idolatria da aparência, especialmente quando esses cuidados se tornam uma obsessão e são utilizados para comparação ou aprovação social", afirma. Assim, práticas como maquiar-se ou depilar-se, por si só, não são pecados. Pelo contrário, esses cuidados podem ser uma expressão de autovalorização e respeito próprio.

Moraes critica algumas igrejas que interpretam a Bíblia de forma rígida, sem contextualizar seus ensinamentos. Para ele, "alguns movimentos cristãos não conseguem fazer a releitura da Bíblia dentro dos seus devidos contextos". Ele observa que esses grupos leem o texto sagrado como se ainda estivessem no antigo templo de Jerusalém, ignorando a evolução cultural e social.

A espiritualidade de Jesus está muito além disso, está bem acima dessas doutrinas e dogmas humanos que pautam comportamentos e vestimentas

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