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Chile: nova Constituição será o contrário da imposta por Pinochet

17/05/2021 09h28

Ao longo do próximo ano, o Chile vai viver o período mais democrático e participativo da sua história em paralelo a um período de incertezas que põe em risco a estabilidade econômica do país. A nova Constituição terá o desafio de combater as desigualdades sociais, mas terá antes a oportunidade de combater outra desigualdade: a de gênero. Pela primeira vez, uma Constituição será escrita por homens e mulheres em igual proporção.

Márcio Resende, correspondente da RFI

Os chilenos decidiram que uma maioria de esquerda e de centro-esquerda será a responsável por redigir uma nova Constituição em substituição à imposta pela ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990), que define educação, saúde, previdência e habitação como serviços privados.

A esquerda e a centro-esquerda obtiveram mais do que os dois terços necessários para aprovar qualquer iniciativa. A direita não conseguiu o objetivo mínimo de um terço dos constituintes para poder vetar ou amenizar as iniciativas da esquerda.

"A direita chilena levou uma surra muito forte. E a consequência dessa surra é que a Assembleia Constituinte vai redigir uma Constituição muito voluntarista, que se preocupará mais com os direitos do que com o financiamento desses direitos", disse à RFI o sociólogo e cientista político Patricio Navia, da Universidade Diego Portales, no Chile, e da New York University, nos Estados Unidos. Assim, a experiência liberal do Chile, única na região, tem os dias contados - aspecto que, por outro lado, abre um panorama de incertezas no campo econômico.

A direita estava unida, com uma única lista de candidatos; a esquerda, fragmentada em várias opções. Mesmo assim, a direita só conseguiu 37 (25%) das 155 vagas de constituintes, bem longe das 52 necessárias para influenciar no processo. As duas principais forças da esquerda tradicional foram às urnas separadas. As coligações "Lista do Aprovo" e "Aprovo Dignidade" conseguiram 53 vagas.

Vitória de cidadãos sem partido

A grande surpresa foi a vitória de candidatos independentes e de cidadãos comuns, sem filiação partidária, mas alinhados com o progressismo. Eles conseguiram 48 vagas e impuseram uma derrota aos partidos tradicionais.

"Em geral, são candidatos de listas independentes, mas de esquerda. Não há independentes de direita", observa Patricio Navia.

Outras 17 vagas foram reservadas aos povos indígenas, na sua maioria, próximos da esquerda. Pela primeira vez, uma Constituição chilena vai reconhecê-los.

Baixa participação popular

No Chile, o voto não é obrigatório desde 2012, mas esperava-se uma participação superior aos 50,9% que votaram, em outubro, a favor de uma nova Constituição. Para evitar que aglomerações em plena pandemia fossem um inconveniente na decisão de votar, foram organizados dois dias de votação, sábado e domingo. Mesmo assim, apenas 38% dos 14,9 milhões de eleitores compareceram. A baixa participação indica a falta de representatividade do sistema tradicional de partidos.

"A sociedade enviou uma clara e forte mensagem ao governo e também a todas as forças tradicionais: não estamos sintonizando adequadamente com os anseios da cidadania e estamos sendo interpelados por novas expressões e lideranças", interpretou o presidente chileno, Sebastián Piñera, quem tem apenas 16% de aprovação, segundo a sondagem da consultora Cadem, publicada no domingo (16).

"Os chilenos querem uma mudança, mas não se identificam com nenhuma liderança nem reconhecem mais os partidos tradicionais como agentes de transformação. Não há quem capitalize os protestos. É um processo constituinte órfão de um projeto político", indica à RFI o analista político Carlos Meléndez, da universidade chilena Diego Portales. "Por isso, as manifestações de rua vão continuar ativas para pressionar os constituintes, sem intermediários", acrescenta.

Novo processo eleitoral

Antes mesmo de os constituintes assumirem, o Chile inicia um novo processo eleitoral. O país terá eleições gerais em novembro, mas as primárias presidenciais começam agora. A posse do novo governo e dos novos legisladores será em março de 2022.

A campanha eleitoral vai conviver com a Assembleia Constituinte, num processo em que um influenciará o outro.

"Sem dúvida, a Constituinte terá uma forte influência na eleição presidencial. Será preciso um presidente que acompanhe o mandato da Constituinte. O novo governo terá de dialogar e sintonizar com o processo constituinte", aponta Meléndez.

"Teremos um presidente eleito com a Constituição velha, mas que governará com a Constituição nova. Teremos um processo constituinte em paralelo às eleições e um novo governo em pleno processo de redação do novo texto. O mais provável é que tanto o novo governo, quanto o Congresso fiquem enfraquecidos. Eles discutirão leis enquanto a Assembleia Constituinte discutirá a nova Constituição", prevê Patricio Navia.

"Várias promessas de campanha dos candidatos, sempre muito desmedidas, desta vez podem terminar incorporadas à nova Constituição", acredita.

Período de incertezas

A nova Assembleia Constituinte ainda não tem data definida para começar seus trabalhos, mas as previsões apontam para junho ou julho. Os debates e a redação do novo texto irão durar nove meses, prorrogáveis por mais três, e devem resultar num novo pacto social entre o Estado e a sociedade. Dois meses após o encerramento da Constituinte, os chilenos voltarão às urnas para um referendo no qual aprovarão ou rejeitarão a nova Constituição. A nova certidão de nascimento do Chile, portanto, só virá no segundo semestre de 2022.

"Abre-se a partir de agora um período de muitas incertezas. Tenho a impressão de que esse período vai durar para além da promulgação porque a nova Constituição pode ter muitas inconsistências. Isso significa que não haverá certezas sobre investimentos ou sobre a propriedade privada", alerta Patricio Navia.

O receio dos agentes econômicos é que os novos direitos representem mais gasto público, afetando o histórico equilíbrio das contas fiscais do Chile, um ímã para os investimentos que garantiram ao país crescimento sustentável e o sucesso do modelo que agora será alterado.

"Sem investimentos suficientes, o país entrará num período de baixo crescimento. Sem crescer, poderá não ter o que distribuir. No Chile, a grande demanda era para distribuir melhor os ovos de ouro, mas acredito agora que vão acabar matando a galinha", adverte Navia.

Esse, aliás, é o dilema ainda não resolvido de países vizinhos que têm Constituições com muitos direitos e que, mesmo assim, estão entre os países mais desiguais do mundo.

"Não há garantias de que haverá menos desigualdade no Chile. Isso motivou as grandes manifestações que levaram a este processo constituinte. Foi a politização da desigualdade. Mas uma nova Constituição não garante que haja menos desigualdade", avalia Carlos Meléndez.

"Não acredito que o Chile será menos desigual. Não há razões para pensar que será diferente dos países vizinhos. Nenhum país da América Latina, que tenha passado por um processo constituinte, solucionou os problemas que esperava solucionar", conclui Patricio Navia.

Mas há uma desigualdade que tende mesmo a diminuir no Chile: a de gênero. Pela primeira vez, uma Constituição será escrita por homens e mulheres em igual proporção. É uma oportunidade histórica para o Chile ter uma igualdade formal de gênero como poucos países têm.

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