Delírio da gripe espanhola: família alemã decepou pai 'endemoniado' em SP
Em 1918, a família alemã Schonhardt protagonizou um crime que chocou a cidade de São Paulo em meio à epidemia da gripe espanhola. Mãe e filho deceparam o pai por acreditarem que ele havia sido possuído pelo ''demônio'' durante a doença.
O que aconteceu
Em 15 de outubro daquele ano, a capital paulista registrou seu primeiro caso de gripe espanhola. Em outros locais do país, a doença já se espalhava após ter sido disseminada em terras brasileiras com a chegada do navio Demerara, vindo da Inglaterra, que ancorou em Recife, Salvador e Rio de Janeiro.
Em São Paulo, a enfermidade matou 5.429 pessoas em 66 dias. À época, a população era de 523.196 residentes, segundo dados levantados pelo historiador Claudio Bertolli Filho no livro 'A gripe espanhola em São Paulo, 1918'.
Com a crise sanitária, os jornais passaram a noticiar histórias de pessoas que, delirando de febre, cometiam atrocidades. Em uma delas, a notícia era de que um vaqueiro matou o vizinho a pauladas. Em outra, um menino de nove anos, também doente, saiu de casa e foi encontrado boiando nas águas do rio Tietê.
A família Schonhardt, que havia vindo de Wurttemberg para o Brasil em 1913, também foi acometida pelos delírios da gripe. Após receber atendimento no Hospital Provisório do Clube Germânia, o pai, Ernest, teria trocado o protestantismo pelo catolicismo e falava de uma luta entre Deus e o diabo, em aparente alucinação.
O filho Ernest, de 19 anos, teria deixado o emprego no Hotel Albion para cuidar do pai. A mãe, Elisa, que também estava doente, chamou o jovem para ajudar nos cuidados com o marido, que parecia transtornado e tentava agredir a mulher, de acordo com informações da historiadora Liane Maria Bertucci, professora da UFPR (Universidade Federal do Paraná).
Mãe e filho se convenceram de que Ernest era, na verdade, a encarnação do demônio. Para eles, os sinais eram claros: a alma do homem já estaria em outro mundo, seu corpo exalava um cheiro de enxofre e até as moscas fugiam dele.
Foi, então, que os dois decidiram matá-lo para ''livrar o mundo do satanás''. No início de dezembro, pai e filho entraram em uma luta corporal. Na sequência, Ernest ficou desacordado, foi asfixiado com uma pedra de amolar e teve a cabeça cortada, descreveram os jornais O Estado de S. Paulo e O Combate, na época.
A outra filha do casal, Rosa, se deparou com a cena e chamou a polícia. Alucinados e em delírio, mãe e filho foram presos e depois confinados no Recolhimento das Perdizes, instituição para pacientes psiquiátricos - chamados de ''doentes mentais'' naquele período.
Enfraquecimento mental
A Justiça solicitou o arquivamento do inquérito policial após um parecer médico sobre a situação mental dos assassinos. Os peritos doutores Enjolras Vampré e Raul Frias de Sá Pinto concluíram que ''o assassinato de Ernest Schonhardt foi praticado por dois alienados perigosos que não podem ser postos em liberdade, mas devem permanecer internados, em tratamento''.
Segundo os médicos, a dupla se encontrava em igual estado de ''enfraquecimento mental'' após terem sido infectados pela gripe. ''Ao invés de considerarem as modificações intelectuais do chefe da família como o produto de uma moléstia mental, de um delírio, acharam antes que Ernest estava praticando todos os atos desordenados sob a influência do demônio'', dizia o relatório.
A mãe foi diagnosticada com uma psicose alucinatória. Para os especialistas, tratava-se do início de uma ''demência paranoide''.
Filho teve ''debilidade mental''. Situação do jovem foi causada por uma intoxicação de seu sistema nervoso com a gripe. E, com influência de Elisa, se tornou ''mais brutal e agressivo'' para matar o genitor.
Gripe espanhola
Estima-se que a doença tenha deixado de 50 milhões a 100 milhões de mortos em todo o mundo. No Brasil, a população tinha medo. Estabelecimentos foram fechados, aglomerações foram proibidas. Fiéis foram desaconselhados até a ir a missas e a dar beijos e abraços.
Os mortos eram tantos que houve pane nos serviços funerários. "Desabastecimento, saques e pilhas de cadáveres aguardando enterramentos passaram a compor a paisagem caótica paulistana durante os dias de combate à epidemia", escreveu a historiadora Anna Ribeiro, do Grupo de Pesquisa, História e Memória da Faculdade de Saúde Pública da USP no artigo "Há Cem Anos, A Gripe Espanhola Assolava São Paulo".
A epidemia teve, em São Paulo, os primeiros casos registrados em 16 de outubro e os últimos em 19 de dezembro de 1918. Em pouco mais de dois meses foram notificados 116.777 infectados (22,32% da população da capital), sendo 86.366 apenas no mês de novembro.
As autoridades determinaram a interrupção das atividades, para tentar conter a propagação da gripe. Os doentes foram isolados nos hospitais, comércios foram fechados, escolas tiveram atividades suspensas. Quem podia, também se afastava do trabalho.