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Sequestro: 'Meu pai foi copiloto em voo que não era o dele e nunca voltou'

Wendy acompanhava o pai, Salvador Evangelista, em voos - Arquivo pessoal
Wendy acompanhava o pai, Salvador Evangelista, em voos Imagem: Arquivo pessoal
do UOL

Colaboração para UOL

15/04/2024 04h00

O ano era 1988. Na época, Wendy Evangelista tinha apenas sete anos quando descobriu que seu pai, Salvador Evangelista, copiloto do voo 375 da Vasp, tinha sido sequestrado e morto a bordo. Com o passar dos anos, a filha do profissional desenvolveu fobia de aviões, se especializou após o tratamento e atualmente ajuda quem vive o mesmo drama.

Luto e fobia

O pai foi assassinado em uma tentativa de ataque terrorista para jogar o avião que pilotava contra o Palácio do Planalto, a sede do Governo Federal. Hoje, aos 44 anos, Wendy lembra o fatídico 29 de setembro como o primeiro de uma série de associações de luto com a aviação.

Estava na casa dos meus avós paternos no dia do sequestro. Enquanto ocorria o atentando, eu era privada de qualquer mídia. Fui para a casa de uma vizinha e não deixavam ligar a televisão. Só soube depois, quando a minha mãe foi até Curitiba e me deu a notícia.

Wendy conta que o pai trocou a escala só para estar presente no aniversário dela. "Ele pediu para fazer parte da equipe do voo 375 para não trabalhar no dia 4, que era o meu aniversário".

Além do trauma do avião, que tirou a vida de seu pai, poucos meses após o caso, o padrasto de Wendy também morreu a bordo. Desta vez, o acidente ocorreu no Rio enquanto ele estava tirando um documento que dá a permissão para pilotar aviões, e, quando voava para uma ilha, a aeronave caiu no mar. O último trauma ocorreu em 1994, quando a irmã dela morreu em um acidente de carro em São Paulo, e Wendy, que morava no Rio, teve de viajar de avião para acompanhar o traslado do corpo.

Ajudar outras pessoas

O tempo passou e Wendy virou psicóloga. Ela teve três filhos e, aos poucos, descobriu que o receio de voo era uma fobia.

Quando fui obrigada a viajar, porque me vi sem muita saída, entendi que tudo o que eu sentia era algo que não queria mais. Passava um filme em minha cabeça e parecia que eu estava passando pelo corredor da morte.

Ela conta que todos os sintomas eram extremamente desagradáveis e irracionais. "Não adiantava falar que estava tudo bem e que o avião era seguro. Eu não aceitava isso. A partir dali, entendi que avião não era para mim."

Wendy sempre voou com o pai e afirma ter boas lembranças dessa época. A psicóloga optou por tratar a fobia quando notou que não conseguia repassar aos filhos as recordações tão queridas que tinha dentro de uma aeronave. Afinal, todas as viagens e passeios eram realizados em um carro.

Ela procurou ajuda para perder o medo de aeronave e, durante o tratamento, notou que havia uma lacuna no tratamento das fobias, mais especificamente, da aerofobia. Essa percepção fez com que a profissional se especializasse na área para ajudar outras pessoas que passavam pelo mesmo trauma.

Se voltei a voar, tive a certeza de que outras pessoas também conseguiriam, principalmente, porque passei um processo parecido e entendia o lado deles.

Além de tratar as pessoas que passavam pelo mesmo trauma, Wendy oferece a possibilidade de acompanhar o paciente em um voo. Ela já chegou a pegar quatro voos em um único dia. O avião não me incomoda mais. Não é um parque de diversão, mas, entendo que é um meio de transporte. Consigo me sentir confortável. Não é gostoso passar muitas horas dentro do avião, mas ficar sentada por horas é ruim em qualquer lugar, ou seja, o avião não é o meu destino escolhido, mas me levará até lá, e poder ir a qualquer lugar é libertador."

Em seu tratamento, ela faz com que os pacientes conheçam sua própria mente e entendam os sintomas de ansiedade que provocam a fobia do avião.

Filme baseado em fatos

O sequestrador do voo que matou Salvador tinha como objetivo matar José Sarney, o presidente brasileiro em 1988. O plano do criminoso era que o piloto direcionasse o voo para Brasília e atingisse o Planalto. O atentado também mataria todos a bordo.

A história chegou a virar um filme chamado "O Sequestro do Voo 375", que estreou na plataforma de streaming Star+ no último dia 7 de fevereiro. Durante o processo de gravação, Wendy comentou que se reconectou com a lembrança do pai e conseguiu ter acesso a memórias que havia esquecido.

Meu pai foi o meu herói. Carrego as histórias que tive com ele até hoje, consigo lembrar e transmitir. Meus filhos conhecem as histórias do avô e isso é incrível.

A história do voo 375

O voo 375, operado pela extinta Viação Aérea São Paulo (Vasp), partiu do Aeroporto Internacional de Porto Velho, em Rondônia, com destino ao Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro. Ele faria quatro escalas nos aeroportos de Cuiabá, Brasília, Goiânia e Belo Horizonte. Na ocasião, 98 estavam a bordo.

Na fase final do voo, entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro, um dos passageiros, identificado como Raimundo Nonato Alves da Conceição, de 28 anos, anunciou o sequestro da aeronave. Com um revolver, calibre.32, ordenou aos pilotos para desviar a rota em direção a Brasília, pois queria que o avião atingisse o Palácio do Planalto.

O copiloto Salvador Evangelista foi morto com um tiro na nuca após tentar contato com o controle de tráfego aéreo para falar sobre o sequestro.

Após ver seu amigo de voo morrer, o piloto Fernando Murilo de Lima realizou algumas manobras para tentar desequilibrar o sequestrador. O piloto conseguiu pousar em Goiânia. Quando retomou a consciência, o homem voltou a ameaçar o piloto.

No aeroporto, houve negociação com as polícias Civil e Federal e, usando o piloto como escudo humano, o sequestrador se rendeu. Quando caminhava até a aeronave disponibilizada pela polícia, Conceição foi alvejado. Ele chegou a ser socorrido, mas morreu alguns dias depois no hospital.

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