Apesar de política contra imigrantes, EUA precisam de mão de obra estrangeira, diz especialista
Analistas ouvidos pela RFI temem apagão na atuação de organismos internacionais pela falta de ajuda financeira dos Estados Unidos e avaliam que exploração do trabalho de imigrantes no país pode aumentar.
Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília
O governo de Donald Trump provoca reações em escala mundial ao permitir a busca de informações sobre imigrantes dentro de igrejas e hospitais, ao chamar venezuelanos de "sacos de lixo" e ao anunciar a expansão de um centro de detenção na base americana de Guantânamo, em Cuba, conhecida por seus métodos de tortura. Para lá, Trump pretende levar até trinta mil estrangeiros de 'alta periculosidade'.
Em um país que considera os primeiros cem dias como uma espécie de carma para o restante do mandato, Trump tenta mostrar serviço a seu eleitorado, emoldurando com discurso agressivo e medidas mais radicais uma política que tem sido constante nos governos estadunidenses, sejam democratas ou republicanos, de deportação de imigrantes.
Arthur Murta, professor de Relações Internacionais da PUC-SP, ressalta que os Estados Unidos dependem muito tanto da mão de obra estrangeira regular quanto dos que estão no país sem qualquer documentação. Ele teme que o resultado dessa política seja uma exploração ainda maior desses trabalhadores.
"A gente pode ver dois cenários. Esses imigrantes ilegais trabalhando com mais medo, numa situação de maior vulnerabilidade e, portanto, mais expostos à exploração, ao trabalho análogo à escravidão e outras coisas do tipo", avalia.
"Num outro cenário, se todos esses imigrantes saírem da força de trabalho dos Estados Unidos, o que eu acho muito improvável que aconteça, isso vai encarecer a mão de obra e levar a um aumento de preços. Isso será um problema interno porque a população votou em Trump exatamente por conta da inflação e porque está muito caro viver nos Estados Unidos", avalia Murta.
A economista Virene Matesco, professora da FGV, também acredita que o ritmo de deportações e perseguição aos estrangeiros vai levar em conta, em alguma medida, a dependência que o setor produtivo americano tem com relação ao trabalho dos imigrantes.
"A mão de obra latina é fundamental para o mercado de trabalho nos Estados Unidos. Um imigrante que consegue um emprego é dedicado, trabalha muitas horas, recebe um salário relativamente baixo para todo o esforço que faz e, quando muito, se é dispensado, ele recebe apenas duas semanas à frente de renda. Ou seja, trabalha muito, não tem proteção trabalhista nenhuma, é dedicado e assume funções desprezadas pelo trabalhador norte-americano", afirmou Matesco.
Caos humanitário global
Entre as tantas preocupações que as ações e promessas de Trump geram no mundo, uma delas pode ter resultados bem danosos a populações vulnerabilizadas, que é a retirada dos Estados Unidos de organismos internacionais e, assim, a supressão das transferências financeiras para sustentar programas que vão da contenção da AIDS ao atendimento de refugiados em várias partes do planeta.
Ao fim da Segunda Guerra Mundial, como forma de influenciar outras nações, levar empresas americanas para além de suas fronteiras e vender o modelo de vida americano ao mundo, os Estados Unidos foram o principal patrocinador da implementação e manutenção de organismos internacionais, especialmente através das Nações Unidas, que regulam o comércio bilateral entre os países, fixam parâmetros sanitários e defendem causas humanitárias.
"Trump está dando as costas para essa ordem liberal, saindo da Organização Mundial da Saúde, dizendo que vai cortar recursos do Acnur, que é a Agência da ONU para refugiados, e da Organização para Migrações. Isso vai gerar um efeito dominó muito grande em matéria de humanitarismo no mundo inteiro, com o aumento de fluxos migratórios, maior vulnerabilização dessas pessoas e surgimento de novas doenças. Com a OMS enfraquecida, perde-se a capacidade de vigilância epidemiológica de cumprimento do regulamento sanitário internacional", ressalta Arthur Murta.
Reflexos no Brasil
O especialista em relações internacionais da PUC cita reflexos já sentidos inclusive no Brasil. "A gente está vendo isso acontecer, por exemplo, com a Organização Internacional para as Migrações e a Operação Acolhida, lá em Roraima. A gente vai começar a ver isso ao redor do mundo. Os Estados Unidos têm uma prevalência muito grande nesses programas de ajuda internacional. O aumento da vulnerabilidade global dessas populações pode gerar uma crise global humanitária generalizada."
Murta diz que não é simples nem rápido substituir um parceiro comercial da importância dos Estados Unidos, mas que a postura de Trump, de olhar para as relações internacionais focado no próprio umbigo pode estimular vários países a diversificar transações e, futuramente, reduzir o peso do país na balança comercial. "Falo isso pensando para daqui cinco, dez, vinte anos. E acho que o acordo Mercosul / União Europeia, que ainda tem degraus importantes a avançar até a implementação, tem potencial para ser um divisor de águas", projeta Murta.
A economista Virene Matesco cita outro ingrediente importante nesse contexto. "Os Estados Unidos veem a América Latina como uma região problemática. A China, ao contrário, já vê a América Latina como uma região estratégica para os seus objetivos políticos e econômicos". Ela cita como exemplo a resposta que Trump deu a uma jornalista brasileira, que perguntou como ele via o Brasil.
" Trump respondeu que o Brasil precisa dos Estados Unidos, mas os Estados Unidos não precisam do Brasil. Uma resposta no mínimo muito grosseira, já que o que nós vendemos para eles são produtos importantes, como petróleo bruto, aeronaves, café, celulose e carne bovina. Além disso, no nosso caso, o Brasil compra mais do que vende para eles, a balança é deficitária para nós", destacou a professora da FGV.