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E se eu te disser que a morte perfeita pode existir? Médica traz 'pistas'

A médica Ana Claudia Quintana Arantes - Bob Wolfenson/Divulgação
A médica Ana Claudia Quintana Arantes Imagem: Bob Wolfenson/Divulgação
do UOL

De VivaBem, em São Paulo

23/01/2025 05h31Atualizada em 23/01/2025 13h21

Cuidar de alguém até o fim da vida pode ser uma experiência traumatizante, mas pode também ser muito bonita e cheia de significado. Encarar a doença ameaçadora de vida de um ente querido não é das tarefas mais fáceis de enfrentar, mas Ana Claudia Quintana Arantes, médica geriatra e especialista em cuidados paliativos, conta histórias, traz leveza, emoção e dá dicas de como passar por esse momento em seu novo livro "Cuidar Até o Fim" (Editora Sextante). Ela é autora do best-seller "A Morte é um Dia Que Vale a Pena Viver".

E se o exemplo arrasta e ensina, é através das histórias de "cuidado até o fim" partilhadas pela médica no livro (chorem ao ler a história de Ana Beatriz, paciente que virou amiga da autora) e na entrevista concedida à reportagem de VivaBem que você entende como a morte pode ser bela e, acima de tudo, digna.

E ela faz questão de reforçar que sofrer é natural nos momentos em que sabemos que a morte está próxima, mas que há maneiras de aliviar a dor promovendo qualidade de vida e bem-estar ao doente. Ao longo de mais de 30 anos de experiência, Ana já encarou as mortes do pai, da mãe e da irmã.

"Na morte da minha mãe, ouvi de uma pessoa 'não achava que você ia ficar tão abalada assim, já que estuda o tema há tanto tempo'. Aí falei: 'é que em todos esses anos de prática minha mãe não morreu nenhuma vez pra eu escolher qual seria a forma mais adequada de lidar com isso. Eu estou muito triste. Tenho direito'. Até fiquei com dó", lembra a autora.

Dirigindo-se tanto ao doente quanto a quem cuida dele, muito mais do que um guia, Ana traz ensinamentos que ficarão tatuados na memória e no coração para quando você precisar encarar a finitude, seja a sua ou de um amor.

Abaixo, leia a entrevista completa:

VivaBem: Por que é tão difícil encarar um diagnóstico de uma doença ameaçadora de vida? Claro, parece meio óbvio, mas gostaria da sua visão como médica paliativista.

Ana Claudia Quintana Arantes: Eu penso que é difícil, Bárbara, pelo fato de a gente ter, de repente, a noção de que não existe controle sobre isso. Nós passamos a vida buscando uma metodologia segura e eficiente de ter controle sobre tudo: trabalho, planejamento financeiro, afetos, horas de sono, meditação, atividade física, o que come, com quem se relaciona, quanto ganha por mês. Você quer que todas as pessoas que ama estejam bem, educadíssimas, amorosas, perfeitas, com a vida toda em ordem, e aí você começa a se dar conta de que tudo que a gente não tem é controle.

Só que uma coisa é quando você perde o emprego, leva um chifre, se decepciona com uma amizade, a vida continua, né? Cai, tomba, fica deprê, mas a vida continua como é. Mas quando tem uma pessoa que você conta, mas ela está muito doente, você não quer que isso esteja acontecendo.

E aí você entra na negação de que tudo vai dar certo porque não consegue pensar que pode dar errado. E que o dar errado é uma condição natural da vida que termina na morte. Morrer não é dar errado.

VivaBem: Você conta no livro sobre a perda do seu pai e da sua mãe. Uma coisa é ser a médica especialista em cuidados paliativos e outra é ser a filha. Como foram esses momentos?

Ana: A do meu pai foi uma experiência muito linda, loucamente linda, porque tinha treinado uma equipe inteira do andar de um hospital de transição para receber um paciente em cuidado paliativo, e o primeiro paciente que chegou nessa unidade foi meu pai. Não sabia direito se chorava porque estava perdendo meu pai ou de ver a beleza daquilo que estava sendo feito para mim, para a minha família, para o meu pai. E saber que aquilo que estava sendo feito foi uma coisa que eu ensinei a fazer...

Foi uma perda muito difícil porque a realidade que ficou depois foi muito difícil para mim: tinha a minha irmã doente e a minha mãe para cuidar. E eu já não tinha mais ele, e era com ele que dividia essas responsabilidades. Então foi um luto bastante trabalhoso.

Um ano antes, ele começou a se comportar como se fosse morrer e botar em ordem muita coisa, até a relação comigo. De alguma forma, ele teve uma consciência da necessidade de pôr as coisas em ordem antes de morrer.

A da minha mãe foi uma morte lindíssima também, ela teve uma doença e não quis nenhum tipo de intervenção. Foi difícil respeitar porque uma das intervenções poderia ter melhorado a qualidade de vida dela, mas ela não quis. Mas foi a morte perfeita, bonita, porque ela morre no dia de São José, que é o padroeiro da família e minha mãe era muito católica. E ela morre com a família toda perto dela.

Ana Claudia Quintana Arantes 1 - Bob Wolfenson/Divulgação - Bob Wolfenson/Divulgação
Imagem: Bob Wolfenson/Divulgação

VivaBem: Você fala no livro que o "tenha fé" é uma das piores coisas para falar para quem está enfrentando a terminalidade da vida. Por quê?

Ana: Essa coisa do ter fé é algo que infringe, de uma forma muito violenta, um espaço sagrado do amor que você tem pela pessoa que está morrendo. Quando você fala tenha fé está dizendo que não ama o suficiente, não está acreditando o suficiente e aí fere esse espaço sagrado do afeto.

Quando a gente estuda o espaço da dimensão espiritual já sabe que existe um modo de enfrentamento que pode ser positivo ou negativo. O enfrentamento espiritual positivo é um que te dá condição, resiliência, espaço dentro de você para abraçar a experiência do adoecimento como um caminho de transcendência.

Gosto da definição de fé que a mãe de um paciente meu falou e até hoje ninguém bateu: 'Nem eu nem minha família escolhemos passar por isso, mas se Deus acredita que nós somos capazes de passar, nós não vamos decepcionar Deus'. É lindo! Isso é fé! E tem o enfrentamento negativo, do tipo punição, abandono, castigo: 'Deus está me castigando porque eu fumei muito'. E o mais difícil de lidar, Bárbara, é quando o paciente se sente abandonado por Deus.

Então, a religião pode ser um espaço de profundo recurso para lidar com a situação da terminalidade ou pode ser um espaço de maior sofrimento, a depender de como a pessoa lida com a sua espiritualidade e escolha religiosa.

VivaBem: No começo do capítulo 6, eu, pessoalmente, tomei uma espécie de "tapa na cara". Você diz que não existe isso de virarmos pais dos nossos pais, e essa frase é uma constante pra mim, ou melhor, era. Me explica melhor...

Ana: A gente tem a impressão de que ser mãe e pai é uma atividade de cuidado, mas é muito mais do que isso. Além de ser a pessoa que gera a sua vida, é a pessoa que te educa. E você não está educando a sua mãe ou o seu pai.

Cuidar pode ser a babá, a avó, a creche. O cuidado é uma atividade de responsabilidade sobre aquilo que está frágil. Mas o educar, permitir o florescimento de um filho, é um via de mão única. É mãe e pai que dão para os filhos.

O que você está fazendo é cuidar de um corpo frágil, mas a reverência para esse ser que está sendo cuidado é a reverência de um filho para o pai. Não se deve esquecer isso jamais, porque aí você não fica ocupando um espaço para o qual você não tem entendimento do que significa.

Fica mais leve você cuidar como filho do que trocar de papel, abrir mão da sua história de filha para assumir um papel que nunca será seu.

VivaBem: No capítulo 10, você cita alguns tratamentos fúteis aos quais muitas vezes a pessoa em terminalidade é submetida. Como as famílias podem se munir de conhecimento para, talvez, questionar ou confrontar os médicos?

Ana: Quando o paciente chega no consultório, vem buscar o acesso a uma novidade que ele viu por aí. Sou uma médica que frustra muito porque não prescrevo nada que esteja no mercado há menos de cinco anos.

Gosto do paciente que vem munido de muitas informações. Você precisa se tornar um especialista na sua doença, de fato. Quando você tem um paciente que sabe por que está tomando, entende a sua doença, é muito mais fácil de compartilhar as decisões sobre o melhor caminho para o tratamento.

E no mundo da terminalidade, o que a gente vai considerar é o benefício de cada intervenção em termos de qualidade de vida de curto prazo. Gosto de famílias que questionam, mas chega um determinado momento que eu vou ter que dizer pra você: 'Bárbara, você vai ter que confiar em mim'.

VivaBem: Há muitas histórias no livro, mas fiquei encucada com a falta de exemplos de maridos cuidando de esposas doentes. Já contamos inúmeras histórias no UOL sobre abandono de maridos diante de uma doença grave. Na sua experiência, você percebe essas diferenças?

Ana: Você está correta na percepção. Os poucos maridos que permanecem ficam muito desamparados porque boa parte dos homens não recebeu um treinamento cognitivo sobre cuidados. Eles fazem muito na boa vontade, mas sofrem, às vezes mais, porque não foram treinados ao longo da vida para se comportarem como cuidadores, então eles fogem. E quando eles não fogem, sofrem mais.

É mais difícil para um homem permanecer ao lado de uma mulher do que para uma mulher permanecer ao lado de um homem. Não é que é mais difícil porque é menos trabalhoso para a mulher. Não, é igual. Trabalho é igual. Cansativo.

Ana Claudia Quintana Arantes 3 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

VivaBem: Não é o foco desse livro, mas você poderia dar dicas pro que a gente chama de "estresse do cuidador"?

Ana: Há uma situação atual muito sombria em relação a isso, porque há uma população que envelhece a passos largos. E, além disso, encolhe porque ninguém tem filhos como antigamente.

Aí você acha que quando tiver 40, 50 anos, vai estar livre, desimpedida, mas tem os pais para cuidar. E esses pais demandam atenção e recurso financeiro num nível muito alto que grande parte da população não tem como arcar.

Por isso, na minha visão, você tem que contar com uma rede de apoio, e a construção dessa rede é fundamental pra gente poder ter esse perfil de um cuidador que sobreviva ao cuidado.

Se você participa de uma comunidade, por exemplo, se você é espírita, vai a um centro, aí o centro espírita fala que você tem que ter fé pra cuidar do seu pai. Aí você participa do grupo de WhatsApp, do grupo de orações... Pergunta um dia quem é que pode fazer a feira pra você? Diz que precisa de ajuda pra limpar os vidros, fazer uma faxina pesada. Aí vamos ver se essa rede de apoio que reza sabe usar as mãos pra ajudar.

Sempre faço essa provocação: coloca isso na sua rede de apoio religiosa. Essa rede de apoio precisa ser um movimento que nasça dessa nossa sociedade agora, para que a gente no futuro tenha condição de sobreviver.

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