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'Parece a Síria, mas é RJ': ele mostra o que sobra quando o tiroteio acaba

Bruno Itan, 36, retrata há 16 anos o dia a dia dos moradores das comunidades do RJ e mostra como fica a região após uma operação policial. - Bruno Itan
Bruno Itan, 36, retrata há 16 anos o dia a dia dos moradores das comunidades do RJ e mostra como fica a região após uma operação policial. Imagem: Bruno Itan
do UOL

Daniele Dutra

Colaboração para o UOL, no Rio de Janeiro

21/01/2025 05h30

As centenas de cápsulas de balas espalhadas pelo chão e o sangue escorrendo pelas vielas remetem a um cenário de guerra, que é registrado por um morador da Rocinha, comunidade na zona sul do Rio de Janeiro. O fotógrafo Bruno Itan, 36, retrata há 16 anos o dia a dia dos moradores e mostra como fica a região após uma operação policial. Seja no Complexo do Alemão, na Rocinha, no Complexo da Penha, Jacarezinho, Manguinhos, Maré, Cidade de Deus, Vidigal ou Mandela, as cenas se repetem.

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Policial mandou apagar as fotos

O olhar atento e sensível para a comunidade aflorou desde muito cedo em Bruno, lá por volta dos 20 anos, quando ele conseguiu um curso gratuito no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em 2008, no Complexo do Alemão. Recifense e de família pobre, Bruno passou a maior parte de sua vida nessa comunidade e não tinha muitas expectativas de futuro, assim como a maioria dos meninos da sua idade. Foi através do curso gratuito que ele se descobriu na fotografia.

Dos anos 2000 em diante, Bruno morou a maior parte do tempo no Complexo do Alemão, e há três anos mudou para a Rocinha. Em meio a um cenário de violência, o fotógrafo conta que sempre viu beleza onde ninguém via. Em 2010, ele fotografou sua primeira operação, aquela em que os criminosos fugiram pela mata do Complexo da Penha para o Alemão. Dentro de casa, com o curso finalizado e sem experiência nenhuma de fotografar, ele decidiu iniciar seu portfólio.

Estava empolgado com o curso, ninguém me conhecia e decidi que iria tentar fotografar essa operação. Só que eu estava dentro da favela e em um dia caótico, um inferno. Eram helicópteros, blindados, exército, Polícia Federal entrando e bandidos em fuga. Peguei a minha câmera e fui percorrer a comunidade, só que eu estava de bermuda e chinelo. Até que fotografei alguns policiais invadindo uma casa. Um deles me viu, apontou o fuzil e começou a perguntar por que eu estava fotografando e por que eu não estava fotografando bandidos, mas sim policiais. Eu disse que eu era morador e menti dizendo que trabalhava na associação. Falei que estava fotografando porque era uma operação histórica e que eles estavam invadindo casas de trabalhadores. Até que eles mandaram que eu apagasse o cartão e perdi mais de 500 fotos, disse Bruno Itan ao UOL.

Assim que saiu da comunidade, fotógrafos de vários jornais foram abordá-lo perguntando se ele tinha algum registro. Após contar que foi obrigado a excluir o material, um profissional decidiu ajudá-lo e, com isso, conseguiram recuperar cerca de 30 fotos.

"Podem confundir minha câmera com uma arma"

Bruno relata que fotografar dentro da comunidade é sempre um desafio, mas que ao longo dos anos criou mecanismos para se proteger dos bandidos e da polícia — para não ser confundido por nenhum dos lados. Segundo o profissional, por ser da comunidade, ele acaba não sendo visto como um fotojornalista, que tem uma identificação de um jornal. Por isso, o cuidado precisa ser redobrado.

Para mim é diferente, moro na favela e sempre quando vou fotografar uma operação policial, saio como morador, coloco minha roupa normal, minha mochila com minha câmera dentro, e saio como se estivesse indo trabalhar. Quando chego lá fora, pego o meu equipamento e passo pelas fronteiras invisíveis. Primeiro, pela fronteira do tráfico e, depois, pela fronteira da barreira policial, e só então que eu pego meu equipamento e volto para onde eu estava planejando

Entrar em uma comunidade no meio de uma guerra é perigoso para qualquer pessoa, mas quando se está com uma câmera na mão, é ainda pior.

"Corro o risco de tomar um tiro dos policiais, pois podem confundir meu equipamento com uma arma. Eu me adaptei a sobreviver nessas operações, é bem complicado e perigoso. Diferente de um fotojornalista que entra na favela em uma operação, mas depois volta para casa dele, eu não tenho essa opção. Vivo aqui durante e depois da operação. Mas sei que é necessário mostrar tudo isso", conta o fotógrafo, que em meio ao fogo cruzado, recebe acolhimento dos moradores, que oferecem abrigo dentro de suas casas, um copo de água e reconhecem a importância de seu trabalho.

"Tem que ser malandro"

Em suas redes sociais, Bruno compartilha desde fotos das crianças da comunidade, a sorrisos, rotina dos moradores entrando e saindo da comunidade, e as cenas mais pesadas, que retratam a violência diária. Em um de seus vídeos, com quase um milhão de visualizações, é possível ver centenas de cápsulas de bala espalhadas pelo chão e poças de sangue escorrendo pelas vielas. Em outra imagem, uma casa completamente perfurada, enquanto um morador varria a calçada.

No dia 17 de dezembro do ano passado, quando mais de 400 policiais entraram na Rocinha, Bruno lembra que acordou ao som de tiros e helicópteros sobrevoando a comunidade. Ele correu para olhar seu WhatsApp, com dezenas de grupos de moradores de diferentes favelas do Rio. Após se informar sobre a localização do tiroteio da operação, ele descobriu com ajuda dos moradores uma forma de chegar até aquele ponto. Como estava sozinho, sem outros fotojornalistas, Bruno descobriu que o Ministério Público entraria na comunidade. Foi a estratégia usada para entrar minimamente em segurança, sem ser hostilizado pelos agentes e fazer os registros.

Costumo dizer que os policiais preferem trocar tiros de fuzil com um bandido do que ver um fotógrafo perto deles com uma câmera. Quando eles sabem que estão sendo filmados, fotografados, eles não conseguem fazer aquelas abordagens truculentas do jeito que estão acostumados. Neste dia, entrei com o Ministério Público, fiquei atrás deles e fui caminhando. Os policiais do Bope me olharam e chegaram até perguntar com quem eu estava. É muito perigoso, mas sei que é necessário. Se eu não tivesse feito aquelas imagens, aquelas cenas, ninguém nunca iria saber como realmente foi e o quão impactante foi essa operação.

Apesar do risco, Bruno sabe da importância do seu trabalho, tanto que transformou a realidade de quem mora nas comunidades em um livro: "Olhar Complexo", que foi finalista do Prêmio Jabuti, um dos mais tradicionais prêmios literários do Brasil. Além do lançamento da obra, ele também dá curso gratuito de fotografia na comunidade, para crianças e adultos, como forma de agradecimento e de retribuição pelo que fizeram por ele lá em 2008, mostrando que existem caminhos e escolhas diferentes do tráfico.

Tiroteios e mortes em 2025

Segundo levantamento feito pelo Instituto Fogo Cruzado, ao menos 33 pessoas foram baleadas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro na primeira semana de 2025. Quinze pessoas morreram e 18 ficaram feridas em meio aos 49 tiroteios ocorridos nos primeiros sete dias do ano. O número de tiroteios, de mortos e de feridos teve aumento de 11%, 87,5% e 125%, respectivamente, em comparação com a primeira semana de 2024, que acumulou 44 tiroteios, oito mortos e oito feridos.

Um terço dos tiroteios nesta primeira semana do ano ocorreu durante ações ou operações policiais, deixando duas pessoas mortas e 13 feridas. Outros dez tiroteios ocorreram em meio a disputas entre grupos armados, deixando duas pessoas mortas e uma ferida.

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