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Ações em tribunal europeu evidenciam limitações do sistema jurídico para proteger o planeta

10/04/2024 15h59

Ao condenar a Suíça por inação climática, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos tomou uma decisão histórica: pela primeira vez, um país foi incriminado pela Justiça por não fazer o suficiente para combater as mudanças do clima. A sentença gera jurisprudência e aumenta a pressão sobre os 46 Estados membros do Conselho da Europa - mas também evidencia as limitações que existem hoje nas ações judiciais pela causa ambiental.

Lúcia Müzell, da RFI Brasil em Paris

Desde 2021, a ONU reconhece como um dos direitos humanos o direito a um clima sadio. Agora, a corte europeia se tornou a primeira a aplicar esta determinação pela via judicial, depois de ser acionada por uma associação de idosas suíças.

As "vovós suíças" alegaram que as mudanças do clima já atingem a sua saúde e as ondas de calor, mais frequentes devido ao aumento da temperatura do planeta, as colocam em risco de morte.

Em uma breve entrevista coletiva ao deixar a corte em Estrasburgo, Anne Mahrer, copresidente da entidade, indicou que o próximo passo é pressionar para a Suíça aplicar a decisão. Entre as medidas, ela cita a redução do impacto ambiental da construção civil e dos transportes, o uso de energias fosseis e, "é claro, visar a atuação do sistema financeiro, que continua financiando essas indústrias".

"São 300 páginas onde está escrito muito claramente tudo que é preciso colocar em prática e que não é feito. Um país como a Suíça não ter orçamento climático, nem objetivos claros para chegar à neutralidade de carbono em 2050, é inacreditável", disse Mahrer, ao enviado especial da RFI, Raphael Moran. "Um país rico, industrializado há tantas décadas, deveria ser exemplar - e não é. Quem paga mais caro são os países do sul, que menos contribuíram para a catástrofe", complementou.

Jovens portugueses perdem ação

Na mesma audiência, o tribunal também analisou a ação movida por seis adolescentes e jovens portugueses - a diferença é que eles não visaram apenas o próprio país, e acusaram 32 Estados europeus de não evitarem o aquecimento do planeta. A corte evocou falhas processuais e decidiu que não poderia receber o caso antes que todos os recursos judiciais fossem esgotados primeiro em Portugal.

"Obviamente, sentimos muito orgulho de todo o trabalho que foi feito durante estes anos - não apenas nosso, mas de todos os cientistas e advogados que estavam conosco. E todo esse trabalho não foi perdido", afirmou uma das jovens, Catarina Mota, de 23 anos. "Não acaba aqui. Isso é apenas o começo."

Reiniciar o processo em Portugal levaria anos, observa o jurista Paulo Magalhães, do Centro de Investigação Interdisciplinar em Justiça, da Universidade do Porto. E, no final, o resultado provavelmente não estaria à altura do problema.

"Todos os processos promovidos em uma jurisdição nacional estão condenados a perder porque o Estado vai se defender dizendo que ele não é o único responsável pelas alterações climáticas. Os jovens até podem ter reconhecido o seu direito a um clima estável e que estão sendo violados direitos humanos, que o direito ao clima estável não lhes está a ser assegurado. Mas os Estados sempre vão dizer que estão a fazer a sua parte e os outros é que não fazem as suas", explica o pesquisador.

Clima não tem fronteiras, alega especialista em direito ambiental internacional

No caso português, as emissões de gases de efeito estufa do país são baixas, na comparação com os maiores emissores. Na última década, Portugal também se tornou um dos melhores exemplos de desenvolvimento das energias renováveis.

"Mas isso resolve o problema dos jovens portugueses? Não", disse Magalhães.  

O clima continua a se degradar - afinal, é o sistema climático da Terra que segue em direção ao colapso, não apenas o de um país. Disso decorre o "buraco jurídico" em que a proteção do planeta se encontra atualmente, argumenta o especialista em direito ambiental internacional. A Terra é considerada apenas como um território, e não como parte de um sistema conectado.

"Os tribunais se esquecem que o próprio sistema judicial e jurídico não está preparado para lidar com um bem que não tem fronteiras. Uma coisa é nos dividirmos o nosso território, de forma abstrata. Fazemos umas linhas no mapa, um espaço aéreo, mas não conseguimos dividir a composição bioquímica da atmosfera ou dos oceanos, nem a circulação global atmosférica e oceânica", explica o professor.

"O direito não tem sido capaz de representar esta realidade funcional e dinâmica do nosso planeta", constata o autor de O Condomínio da Terra: das Alterações Climáticas a uma Nova Concepção Jurídica do Planeta.

Por isso, aponta o especialista, o combate à crise climática é "incompatível" com a organização jurídica que existe hoje. Ele alega que, primeiro, seria preciso determinar que o clima é um bem comum da humanidade - a exemplo do que foi feito com o fundo do mar. Depois, a criação de uma autoridade internacional específica, inclusive com tribunal próprio, passaria a se ocupar dessas causas.

"Se nós aceitarmos que o planeta é também um sistema e que o sistema é comum, poderemos criar uma contabilidade entre todos, de quantos impactos positivos fazemos a este bem comum e quantos negativos, e então teremos um saldo. Sem isto, não haverá ação coletiva", salienta Magalhães. "Sem isto, continuaremos pelo resto da vida a dizer que os do norte emitiram historicamente e têm mais responsabilidades, o que é verdade, e os do sul a dizer que têm coisas positivas para o sistema pelas quais os do norte não pagam."

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