'Fiz dívida para não largar sonho': cortes mudam a vida de universitários
As universidades federais brasileiras, que já funcionam com restrições no orçamento há anos, sofreram nova ameaça neste mês. O governo Jair Bolsonaro chegou a anunciar um bloqueio de R$ 2,4 bilhões para a educação — o que atingia em cheio as instituições públicas de ensino superior.
Depois, após pressão de reitores e estudantes, o Ministério da Educação (MEC) informou que a verba seria desbloqueada, sem detalhar quando.
A ameaça trouxe à tona a situação de precariedade enfrentada pelas universidades públicas há anos. As verbas são insuficientes para novos investimentos e as instituições fazem malabarismos para honrar com contratos e continuar dando aulas, afirmam reitores.
Estudantes relatam clima de insegurança e preocupação diante da falta de recursos. Eles também contam como as restrições orçamentárias ao longo dos anos vêm causando impactos na rotina.
Desde 2019, há reduções sucessivas nas verbas para a educação. Naquele ano, o MEC anunciou corte de 30% nos repasses para as universidades, depois que o então ministro Abraham Weintraub afirmou que as instituições federais promoviam "balbúrdia".
A ameaça de bloqueio orçamentário neste mês nem foi a primeira do ano. Em junho, o governo federal já havia feito um bloqueio de R$ 3,2 bilhões — cerca de 14,5% do orçamento total do MEC para este ano. Naquela ocasião, levou uma semana para a União desbloquear metade desse valor — também após pressão de reitores. A outra metade foi cortada definitivamente.
A estudante de medicina da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) Naã Santos, 24, chegou a pensar em desistir da universidade por causa da falta de verbas.
Quilombola, ela conta que os pais não conseguem ajudá-la financeiramente. "E não consigo trabalhar porque meu curso é integral." Naã depende de bolsas de permanência para se formar.
Em 2019, diz que chegou a ficar três meses sem o auxílio. "Com esses cortes, fiz muitas dívidas para não largar o meu sonho." Ela recebe hoje uma bolsa mensal de R$ 900. "Sem isso, minha permanência na universidade é quase impossível."
A insegurança sobre novos bloqueios causa ansiedade. "Minha mente, que deveria estar voltada para os estudos, fica ansiosa pensando no que pode vir a acontecer daqui para frente. Prejudica muito meu rendimento acadêmico."
O caso de Naã não é isolado. "A posição dos alunos é de bastante preocupação e medo do futuro", diz Paulo Ricardo Freitas, 25, estudante de medicina da UFSB.
A reitora Joana Angélica Guimarães diz que o déficit da universidade chega a R$ 1 milhão. A universidade tenta negociar a recomposição do orçamento, mas a ameaça de novos cortes vem como balde de água fria. "Pegou a todos de surpresa".
Para Joana Angélica, a perspectiva de novos contingenciamentos pode provocar "situação de paralisia" na UFSB. "As universidades já vêm enfrentando cortes todos os anos. É um estrangulamento." Assim como outras instituições, a UFSB também sofre com a falta de funcionários e professores.
Na Universidade Federal de Catalão (UFCAT), no interior de Goiás, a reitora aponta "sucateamento". "Não conseguimos manter a manutenção predial, temos uma universidade com insuficiência física para o funcionamento", diz Roselma Lucchese.
"Não temos recursos para construção e para adquirir grandes equipamentos por falta de capital, que vem de forma irrisória. Mal dá para restabelecer a compra de livros, por exemplo", diz ela. A UFCAT é uma das universidades mais novas do Brasil.
Já na Universidade Federal do ABC (UFABC), na Grande São Paulo, estudantes dizem que a falta de recursos dificulta a contratação de novos profissionais — o que causa filas no bandejão e problemas no transporte em ônibus gratuitos que ligam a universidade à estação de trem.
"Hoje, [a frota] está extremamente limitada e não atende às expectativas dos alunos", conta o estudante Renan Santos Cambuí, 18, que começou a cursar o bacharelado em Ciências e Tecnologias.
Ele também tenta uma bolsa de iniciação científica de R$ 400, mas teme pelo futuro desses auxílios.
"O clima é de receio, de insegurança, de revolta e de preocupação. Tememos não concluir o curso em que estamos atualmente matriculados", diz a aluna da UFABC Roberta Perez de Magalhães, 20, que estuda Planejamento Territorial.
Por meio de nota, antes do anúncio de desbloqueio de verbas pelo MEC, a UFABC informou que traçava estratégias para garantir o funcionamento das atividades. E que os pagamentos de bolsas estudantis e dos contratos terceirizados não sofreriam impactos porque são considerados prioridades.
Ministro recua de bloqueio
O ministro da Educação, Victor Godoy, anunciou nesta sexta-feira (7), em um vídeo publicado em seu Instagram, que recuou da decisão de bloquear R$ 2,4 bilhões da pasta.
A decisão ocorreu um dia após forte pressão de reitores e estudantes, além de uma manifestação nas ruas de Salvador, e em meio à disputa presidencial de segundo turno.
No vídeo, Godoy não explicita quando será a liberação e se o desbloqueio é total ou parcial, mas afirma: "O limite de empenho será liberado para universidades federais, institutos federais e a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, que faz o pagamento de bolsas de pós-graduação).
O ministro explicou que a liberação é um movimento que está sendo feito pelo Ministério da Economia, "mantendo-se a responsabilidade fiscal mas, também mostrando a sensibilidade de facilitar a vida do gestor e do reitor".
"Conversei com o ministro Paulo Guedes, ele foi sensível. Nós vamos facilitar a vida de todo mundo", disse Godoy.
O presidente Jair Bolsonaro (PL) também reagiu às críticas sobre o corte no orçamento das universidades e institutos federais. "Não está faltando nada agora, é mentira", disse o presidente na sexta-feira (7), durante coletiva no Palácio da Alvorada.
"Nós sabemos que nas faculdades a militância é enorme. Qualquer negocinho é um carnaval lá contra a minha pessoa", disse.
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