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Afeganistão: um ano após a volta do Talibã, afegãos relatam tortura e desilusão

14/08/2022 15h46

Nesta segunda-feira (15) faz um ano que o Talibã tomou a capital afegã, Cabul, e reinstaurou no país um sistema fundamentalista religioso. Foi restabelecido o Emirado Islâmico do Afeganistão - que vigorou no país durante o primeiro regime Talibã, de 1996 a 2001 e que aplica a Sharia, a lei islâmica, com rigor. Desde então, os retrocessos são incontáveis e em todos os campos: as mulheres viram seus direitos regredirem drasticamente e toda uma geração de jovens perdeu a esperança.

Por Paloma Varón, da RFI

"Tem sido um ano de tortura e desilusão. A situação é, a cada dia, mais preocupante e só piora. A cada dia, cada passo, cada decisão que o Talibã toma, basicamente coloca o meu país no caminho de uma catástrofe ainda maior: economicamente, socialmente, culturalmente... Eles estão criando tensões étnicas, agravando problemas econômicos e nos isolando do mundo. Foi um ano muito duro e a parte triste é que ainda não acabou", descreve o afegão Khalid Yousafzai, analista de mercado em Paris. 

Aos 29 anos, Yousafzai deu uma entrevista à RFI logo após a queda de Cabul, no ano passado. "Como muitos afegãos, eu não consigo dormir, comer nem viver normalmente estes dias. Não existe no dicionário uma palavra para descrever meus sentimentos", relatava o afegão um ano atrás. 

A vida de mulheres e meninas no Afeganistão mudou radicalmente após a campanha repressiva contra seus direitos básicos realizada pelo Talibã, de acordo com um relatório da Anistia Internacional (AI) publicado em julho deste ano. A ONG de direitos humanos conduziu uma pesquisa de campo em que entrevistou dezenas de mulheres e denuncia uma "repressão sufocante" que destrói a vida de mulheres e meninas. Marie Forestier, pesquisadora da Anistia, é integrante da missão que investigou o país durante meses.

"O relatório mostra que o conjunto de restrições impostas às mulheres em todos os níveis cria uma espécie de teia de aranha sufocante que afeta as mulheres afegãs em todos os aspectos de suas vidas. Seja pela educação, pela maneira como se vestem, pela maneira como trabalham ou até mesmo para se locomover, elas são sufocadas pelas regras e restrições impostas pelo Talibã", afirma.

A pesquisadora conta que o Talibã trouxe a prisão e a tortura de volta ao cotidiano das mulheres.

"Nós documentamos o fato de que o Talibã está prendendo mulheres afegãs pelo que eles chamam de 'corrupção moral'. A "corrupção moral" segundo o Talibã é sair, estar no espaço público, sem um mahram, ou seja, um membro da família do sexo masculino, um pai, um irmão, um marido, que precisa acompanhar as mulheres. Aquelas que saem de casa sem um acompanhante correm o risco de serem presas. Assim, não apenas as mulheres são detidas arbitrariamente, mas também, quando estão na prisão, são torturadas, espancadas e submetidas a maus-tratos", acrescenta. 

Outro fenômeno preocupante apontado neste relatório: muitos sinais mostram um aumento de casamentos precoces de meninas no país. As causas, segundo a AI, são muitas. 

"Primeiro, a crise humanitária e econômica, ou seja, as famílias que ficaram sem recursos para alimentar os seus filhos; para elas, uma das soluções mais óbvias é casar suas meninas, para ganhar o dinheiro do dote, e para que a filha tenha o que comer na família do marido.

A falta de perspectivas para as meninas no país seria uma das causas, de acordo com a pesquisadora, que esteve no trabalho de campo: "A outra razão é o fato de que as escolas fecharam, não há perspectivas profissionais e de educação para as meninas e mulheres. Elas, que antes faziam planos para a sua educação, para ter uma profissão e se sustentarem. Esses desejos, esses sonhos de futuro foram destruídos, pois elas não podem mais estudar. E a maneira de garantir uma renda, para poder viver bem, é se casar para ter um marido que as proverá". 

Residente na França há seis anos, o analista de mercado afegão Khalid Yousafzai, diz que vivencia isso com todos os seus próximos que estão no Afeganistão, a começar pela sobrinha adolescente que não pode mais ir à escola.

"A escola dela está fechada. Ela esperou, esperou pela reabertura... Ela não tem nada para fazer em casa... e nós não temos uma resposta para ela", lamenta. 

"Noventa por cento, principalmente dos jovens, não querem mais viver no Afeganistão, querem encontrar uma maneira de sair, uma maneira de encontrar um trabalho, porque, onde eles vivem, não tem nada", diz o analista de mercado, contando que recebe com frequência pedidos de ajuda, de conhecidos e desconhecidos, para sair do país comandado pelo Talibã

Mas o fato de estar seguro na França não tira de Yousafzai a dor de não saber quando e se poderá, um dia, voltar ao seu país.

"É extremamente triste, é um sentimento que nunca te abandona, você nunca está em casa... Por mais que eu tenha bons amigos aqui na França, por mais que haja uma comunidade aqui. Quando você não pode voltar para o lugar onde você nasceu, sua vida sempre terá esse espaço vazio que nada pode preencher... É um sentimento triste, de esperar que um dia as coisas possam voltar ao normal e eu possa voltar ao meu país, é duro", descreve.

Um ano depois da primeira entrevista que deu à RFI, logo após a queda de Cabul, Khalid Yousafzai tenta fazer do desespero inicial uma força para resistir à distância, seja na assistência humanitária, seja fazendo ouvir a voz de afegãos que, como ele, são contra o regime fundamentalista e querem ter de volta o direito de sonhar.

"Eu tento não apenas dar essa assistência humanitária a quem está lá de forma individual, mas espero persuadir um grupo, uma comunidade, um governo a fazer o mesmo; é isso o que posso fazer estando aqui. Se você consegue alimentar uma única família de lá, é uma grande conquista. Outra coisa a fazer é criar uma narrativa sobre um futuro Afeganistão pacífico e democrático", diz.

"Mas precisamos fazer isso de uma maneira em que não sejamos mortos. Nós somos contra o Talibã, mas eu não posso lutar nem pedir para alguém lá lutar por mim enquanto estou aqui, sentando, na França. Então resistimos como podemos, na nossa comunidade, escrevendo na imprensa, fazendo ouvir o nosso discurso, usando as redes sociais... todas essas atividades no front político, junto com a ajuda humanitária. Essas são as duas coisas que eu acredito que a gente possa e deva fazer", completa Yousafzai. 

 

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