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França: em livro, sociólogo mostra como classe social influencia futuro já na primeira infância

20/09/2019 12h22

O professor de Sociologia da Escola Normal Superior de Lyon, no centro da França, Bernard Lahire, coordenou um grande estudo sobre as desigualdades sociais das crianças francesas na primeira infância. A pesquisa acaba de se transformar em um livro, "Enfances de Classes" (Infância e classes sociais, em tradução livre), publicado no final de agosto.

O professor de Sociologia da Escola Normal Superior de Lyon, no centro da França, Bernard Lahire, coordenou um grande estudo sobre as desigualdades sociais das crianças francesas na primeira infância. A pesquisa acaba de se transformar em um livro, "Enfances de Classes" (Infância e classes sociais, em tradução livre), publicado no final de agosto.

Durante quatro anos, entre 2014 e 2018, o sociólogo coordenou uma equipe de 17 pesquisadores, que acompanharam 35 crianças entre 5 e 6 anos, escolarizadas, de diferentes classes sociais. Algumas delas moravam na rua, outras em palacetes.

O estudo mostrou como a condição social influencia a aprendizagem, a aquisição de competências linguísticas e os códigos culturais, que serão determinantes para o futuro. Em 1234 páginas, o livro detalha de maneira às vezes quase brutal as dificuldades cotidianas de crianças na França que vão para a escola, mas que dormem dentro de um carro e são hostilizadas pelos seus colegas de classe.

As primeiras palavras do livro são uma citação de Darwin, conhecido pela teoria da evolução das espécies, mas que em sua obra, "A Descendência do Homem" (1871), analisa a questão da desigualdade de classes na infância, observando a situação na sociedade inglesa de sua época. Na obra, ele aponta a vantagem que filhos de famílias mais ricas têm em relação aos mais pobres na "corrida pelo sucesso". Quase 150 anos depois, a observação de Darwin é mais pertinente do que nunca.

"Há algumas décadas países como a França colocaram um freio nas políticas sociais, limitando as ajudas ou as condicionando, retirando no fundo um pouco de dinheiro dos mais pobres, e não dos mais ricos. Contribuímos, através dessa política, à reprodução das desigualdades, de maneira mais estruturada", analisa Lahire.

Isso não significa que não seja possível reverter essa situação ou melhorá-la, ressalta, mas as resistências são fortes. "Quando economista Thomas Piketty fala de taxar mais os ricos, limitar a herança e distribuir a questão da propriedade, ele é considerado como alguém perigoso ou revolucionário. É possível, mas claro que as resistências são enormes em relação a um programa desse tipo", resume o sociólogo francês.

Desigualdade do destino

A questão coincidentemente virou pauta do governo francês, que acaba de divulgar um projeto para diminuir as chamadas "desigualdades de destino". Ele visa acompanhar os primeiros mil dias da vida das crianças francesas, para favorecer seu desenvolvimento e compensar esse desequilíbrio entre classes desde o nascimento. O sociólogo francês demonstra um certo ceticismo em relação a esse tipo de iniciativa, ainda que as considerem válidas. "A ideia por si só é boa", diz Lahire. "O grande problema que apontamos, estrutural, é o da distribuição da riqueza, seja ela econômica ou cultural. Essa distribuição desigual é essencialmente mantida pelas políticas que são adotadas", analisa Lahire.

"De um lado existe a ideia de criar políticas para diminuir a desigualdade entre as crianças em relação à escola, à saúde ou à cultura, mas ao mesmo tempo pouca coisa é feita para que seus pais tenham moradias dignas ou melhores condições de emprego ou remuneração. Isso não pode funcionar. São parcos meios de compensação", observa. "Existe a impressão de algo está sendo feito, de uma "agitação política", mas não está à altura do problema", conclui.

 

Situações socialmente trágicas em país rico

A equipe do sociólogo francês foi ao encontro de crianças pequenas e de seus pais e professores. Algumas vivem situações dramáticas, difíceis de imaginar em um país desenvolvido. Um deles é Balkis, 5 anos, que durante seis meses dormiu dentro de um carro com seu pai e seus dois irmãos. Ou ainda Ashan, que vive com sua mãe, que veio do Sri Lanka, em um abrigo do governo para refugiados.

"A mãe vive de ajudas sociais e consegue ganhar um pouco de dinheiro fazendo faxina na escola. São vidas extremamente restritas financeiramente, mas também restritas pelas dificuldades culturais e linguísticas, ligadas a essa situação extremamente precária."

A trajetória de Libertad, uma menina cigana, que viveu em favelas, debaixo da ponte ou em moradias ocupadas clandestinamente, é outro exemplo. Na escola pública que frequenta, conta sua professora, os outros alunos não se aproximam dela no pátio, provavelmente seguindo a orientação dos pais, que preferem que seus filhos não se misturem.

"Todas essas crianças vão para a escola, mas não têm o estado de espírito, o comportamento, a competência e os hábitos de vida que permitirão que se transformem em um bons alunas, tranquilos e concentrados", declara. "São crianças perturbadas pela sua situação de família e suas próprias condições de vida." A conclusão, podemos dizer, fatalista, é que isso vai, infelizmente, limitá-la, por isso Lahire cita Darwin, que frisa a desvantagem das crianças mais pobres "independentemente de sua superioridade mental ou corporal."

Redistribuição de riquezas

De acordo com o sociólogo, na França existem, como em outros países, casos de crianças oriundas de classes mais populares que conseguem melhorar de vida. Seus casos não são representativos do todo: a questão da igualdade não passa por trajetórias individuais, mas pelo acesso generalizado às riquezas através de sua redistribuição.

"Vivemos em uma sociedade onde existe uma classe popular extremamente precária, que vive cada vez mais em piores condições, porque as políticas neoliberais as atingem diretamente. A classe média, "atacada" com frequência também está em uma situação difícil. A sociedade francesa é bastante estruturada, hierarquizada, e é isso que mostramos no livro", resume.

Competividade entre os mais ricos, felicidade para a classe média

Um dos traços das elites, ressalta o sociólogo francês, é o estímulo à competição. Os filhos de famílias mais ricas aprendem com frequência a dar o melhor de si, a se esforçarem para serem o melhor, e esses ensinamentos são reforçados em atividades esportivas, por exemplo.

"Os pais podem, no cotidiano, ressaltar a importância de serem bons alunos ou atletas. É um ambiente que contribui para preparar as crianças à competição social. Sabemos que para ocupar as posições sociais mais importantes é preciso frequentar o que na França chamamos de 'grandes écoles', instituições elitistas que exigem um concurso difícil na entrada. É preciso ter uma grande capacidade de trabalho", exemplifica Lahire, ressaltando que já aos 5 ou 6 anos os pais mais ricos já preparam o filho para isso.

Nas classes médias francesas, diz, a tendência é privilegiar a qualidade de vida e a busca pela felicidade e o prazer, distanciando as crianças do excesso de competividade. "Em geral, seus filhos são bons alunos, mas como eles não participam das maiores competições sociais, os pais dessas crianças têm tendência a cobrar menos e se distanciar desse espírito de concorrência e competência necessários para atingir o topo."

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