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Anvisa bane agrotóxico cancerígeno, mas libera uso em lavoura por até 1 ano

"Milhas e milhas": decisão foi tomada depois de ordens da Justiça em 2019 e 2022 - Alffoto/Istock
"Milhas e milhas": decisão foi tomada depois de ordens da Justiça em 2019 e 2022 Imagem: Alffoto/Istock
do UOL

Do UOL, em Brasília

08/08/2022 19h13Atualizada em 08/08/2022 19h14

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) decidiu hoje (8) banir o agrotóxico cancerígeno carbendazim, mas liberou seu uso por até um ano. A medida ocorre mais de um mês após o mesmo órgão proibir a aplicação imediata do produto no Brasil de maneira cautelar.

O veneno é usado para matar fungos em culturas como soja, milho, laranja e maçã. Desde 2012 o Brasil não o utiliza em plantações de laranja porque os Estados Unidos rejeitam importar suco de frutas atingidas pelo agrotóxico. O produto também é proibido na Europa.

Nesta segunda-feira (8), a agência terminou um processo de reavaliação toxicológica e concluiu que o carbendazim é tóxico e que ele deve ser banido.

Mas, ao mesmo tempo, permitiu sua "descontinuação gradual" —o que, na prática, permite que ainda seja produzido, comercializado, exportado e utilizado nas lavouras em tratores com cabine fechada.

"A norma também permite que os produtos adquiridos pelos agricultores, pessoas jurídicas ou físicas, e pelas indústrias de tratamento de sementes, destinados ao uso final, sejam utilizados até o seu esgotamento, respeitando-se o prazo de validade do produto", diz comunicado da agência divulgado na tarde de hoje.

Banido, mas...
Os prazos* para descontinuar o carbendazim no Brasil:

  • importação de produtos - imediato
  • uso do agrotóxico de maneira manual, estacionária e em tratores de cabine aberta (liberado para veículos do tipo com cabine fechada) - imediato
  • produção - três meses
  • comercialização - seis meses
  • exportação - um ano
  • descarte controlado dos estoques residuais - um ano e dois meses
  • estoques em poder de agricultores e indústrias que produzem sementes - até acabar o estoque e sua validade (produto vence em dois anos).

*Os prazos começam a correr a partir da publicação da decisão de hoje

Anvisa nega recuo

A deliberação foi unânime entre os quatro diretores em exercício da agência: o presidente Antônio Barra Torres, Alex Campos, Rômison Mota e Meiruze Freitas.

Segundo o relator, Alex Campos, o veneno foi considerado presumidamente cancerígeno, tóxico e mutagênico. "A área técnica concluiu que o carbendazim induziu as quatro manifestações de toxicidade para o desenvolvimento: mortes, anomalias estruturais, alterações no crescimento e déficits funcionais. É por isso que a solução regulatória vai no sentido da proibição", disse.

Durante a reunião da Anvisa, ele afirmou que não se tratava de um recuo ou "reviravolta" na decisão tomada em 21 de junho, quando o uso do veneno foi proibido imediatamente. "Muito pelo contrário. Temos uma decisão que resolve em definitivo a proibição", disse.

Em seu relatório, Campos afirmou que a decisão de hoje era mais completa por concluir a análise do agrotóxico e a forma de se serem utilizados os produtos remanescentes.

"Houve muita dúvida de como ia se dar esse produto que estava no Brasil, na indústria e em todo o canto", disse ele na reunião. "Aqueles produtos que estavam nos estoques das indústrias e internalizados por importação."

Agência diz que queima seria pior que utilização

Em comunicado, a Anvisa defendeu que a eliminação gradual é o melhor método para o carbendazim e é, "normalmente, a medida adotada nas decisões de banimento de agrotóxicos por agências regulatórias internacionais".

Segundo a agência, queimar os estoques do defensivo seria mais prejudicial do que utilizá-los até o final. "O carbendazim é classificado como altamente tóxico para organismos aquáticos (microcrustáceos e peixes) e altamente persistente no meio ambiente, e, na perspectiva do impacto ambiental, a incineração é geralmente mais preocupante do que o esgotamento do estoque dos produtos."

A diretora Meiruze Freitas comparou ao processo de hoje ao que baniu o agrotóxico DDT em 1961. Segundo ela, aquele veneno foi banido sem prazo para liminar os estoques. "A fábrica foi fechada e o produto foi exposto a uma eliminação inadequada", disse.

Ela afirmou que o processo foi complexo, mas feito com muito cuidado para garantir a "proteção à saúde pública". "Me vem sempre à cabeça a reflexão da música do Cidade Negra 'Na estrada': 'Milhas e milhas para se chegar até aqui'. Porque é um ato muito completo, muitas vezes entendido como moroso, mas ele precisa ser cuidado em cada uma de suas etapas."

Veneno segue liberado em outras áreas

A decisão de hoje, porém, não atinge o carbendazim utilizado fora da agricultura, como na indústria de tintas e vernizes para proteger madeira.

Por isso, a Anvisa pretende enviar um pedido ao Ministério da Saúde para que analise se as pessoas que trabalham com esses produtos estão com sua saúde em risco também. A ideia partiu de Meiruze Freitas, que explicou a medida ao UOL:

Entendi ser importante comunicar a Saúde para que avalie as condições de segurança do trabalho"
Meiruze Freitas, diretora da Anvisa

Críticas à liberação por até um ano

A antecessora de Campos na relatoria, a médica e ex-diretora da agência Cristiane Jourdan, disse lamentar a criação de prazos para retirar o veneno dos alimentos.

"Tal solução visa atender apenas estratégia de ordem econômica como planejamento de esgotamento perante a cadeia produtiva", afirmou ao UOL. "É lamentável que um órgão regulador com a suprema missão de zelar pela saúde da população brasileira possa declinar de tamanha responsabilidade frente a essa demanda perfeitamente absorvida pelo mercado."

O coordenador do Observatório da Indústria de Agrotóxicos da Universidade Federal do Paraná, o economista Victor Pelaez, avaliou que "isso faz parte do jogo regulatório". "Numa perspectiva econômica, esse é um processo histórico de protelação e que a indústria se vale para conseguir retardar ao máximo a efetividade", disse.

Processo se arrastou por três anos

A decisão de hoje conclui um processo de reavaliação, que só começou depois de uma decisão judicial de julho de 2019. Naquele mês, a 6ª Vara Federal de Brasília ordenou que a Anvisa analisasse a toxicidade do carbendazim. Passados mais de dois anos, o processo na agência não havia sido concluído.

Em maio deste ano, o UOL mostrou que uma decisão da agência, na prática, adiou um pouco mais o processo. Em junho, a 6ª Vara Federal de Brasília ordenou que a Anvisa concluísse a reavaliação em 60 dias, prazo que se encerraria nesta semana.

Em resposta, a agência se reuniu em 21 de junho e decidiu proibir o agrotóxico imediatamente. Na reunião, também decidiram terminar a análise até agosto, prazo ordenado pela Justiça. Houve divergência entre os diretores porque a então relatora do processo, Cristiane Jourdan, reclamou da inversão da ordem de votação.

Para ela, essa ordem de julgamento abriria brecha que as empresas tivessem mais tempo para continuar usando o carbendazim mesmo depois do banimento. Cristiane Jourdan entendia que, por ser um produto cancerígeno, não seria permitido dar nenhum prazo adicional para "eliminação gradual" dos estoques.

Em protesto, a diretora deixou a reunião virtual da Anvisa de 21 de junho. O mandato dela se encerrou em 25 de julho e ela não participou da decisão de hoje.

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