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Clínicas populares privadas tentam ocupar espaço do SUS na periferia do Rio

Cláudia e a mãe, Luci, aguardam atendimento em clínica particular em Bonsucesso - data_labe
Cláudia e a mãe, Luci, aguardam atendimento em clínica particular em Bonsucesso Imagem: data_labe
do UOL

Gabriele Roza*

Do data_labe

26/09/2020 04h00

Faz pouco mais de três anos que Cláudia Lúcia Oliveira, 53, sentiu a falta da médica que acompanhava a saúde da mãe Luci Oliveira, 75, no Centro Municipal de Saúde Maria Cristina Roma Paugartten. O centro atende a região de Bonsucesso, zona norte do Rio de Janeiro, onde as duas moram.

''De um tempo para cá, minha mãe só vai no público para trocar a receita com a enfermeira e só passa numa médica responsável se for necessário. Não tem mais acompanhamento", diz Cláudia.

Diabética e hipertensa, Luci se consultava com a médica do SUS (Sistema Único de Saúde) regularmente, mas, no início de setembro, começou a frequentar uma clínica privada.

"Só que a receita da minha mãe já tem seis anos. Ela não pode — sendo diabética, sofrendo de pressão alta — ficar com uma receita eterna com os mesmos remédios. Por isso, nós viemos para cá, não vamos ficar esperando alguma coisa acontecer para ir ao médico", afirma.

Na unidade, a consulta saiu por R$ 90, mas Luci precisou fazer também alguns exames que, juntos, somaram R$ 630.

É pago? Sim, mas pelo menos é uma garantia de uma resposta que você não tem no SUS."
Cláudia Lúcia Oliveira, usuária de clínica particular em Bonsucesso

Médica em uma clínica particular no Centro de Caxias, município do Rio, na Baixada Fluminense, Dalva, de 65 anos, avalia que a clínica popular privada acaba sendo uma saída para quem não tem atendimento no serviço público.

''Os hospitais públicos estão todos sem infraestrutura. Se a gente tivesse um sistema de saúde público que atendesse... Mas não tem. Então, isso acaba sendo uma solução'', afirma.

Para Leonardo Mattas, pesquisador do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), contudo, planos de saúde não devem ser vistos como uma solução completa para a população.

"Numa discussão séria, estaríamos falando em reduzir a participação dos planos privados e em melhorar, ampliar e qualificar o SUS. Em vez de planos populares para as classes C e D, falaríamos em fazer um SUS qualificado que até as classes A e B pudessem acessar", pondera o pesquisador, que ressalta a integralidade na atenção primária contemplada pelo sistema público.

[O SUS] É um serviço que tem uma vinculação territorial ligada às necessidades de cada território, um serviço que se preocupa com o perfil epidemiológico de cada local e com a vinculação das famílias naquele serviço. O plano de saúde, não. É algo simplesmente pontual e do consumo."
Leonaro Mattas, pesquisador da UFRJ

Prestadores de serviço

Clínicas populares não são vinculadas a planos de saúde, explica Thiago Basílio, subcoordenador do Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon) da Defensoria Pública do Rio.

"Formalmente, operam como prestadores de serviços que se unem e fidelizam o consumidor mediante um contrato de saúde mais barato e acessível, com número de consultas limitadas e rede restrita. Assim, não estão sujeitas à regulamentação da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) e às leis dos planos de saúde", afirma.

"Até 2015, tínhamos 50 milhões de pessoas nos planos de saúde propriamente ditos, o que equivale a, mais ou menos, um quarto da população do país. Com a crise nos últimos anos, o número caiu para 47 milhões", prossegue. Com a pandemia do novo coronavírus e a crise econômica, avalia, há uma possibilidade concreta de haver um aumento no número de prestadores de serviço que se unem para atrair pessoas que não têm acesso aos planos de saúde.

Essas clínicas populares que têm todas as especialidades estão crescendo em decorrência dessa demanda. Só não têm internação. É ambulatório, mas a gente faz um trabalho bom."
Dalva, médica de clínica particular popular

Rafaela Pereira, 27, faz acompanhamento ginecológico em clínica particular em Bonsucesso - data_labe - data_labe
Rafaela Pereira, 27, faz acompanhamento ginecológico em clínica particular em Bonsucesso
Imagem: data_labe

Moradora da Baixa do Sapateiro, favela do Complexo da Maré, Rafaela Pereira, 27 anos, já se consultou quatro vezes com o ginecologista de uma clínica particular em Bonsucesso. Funcionária de um shopping, ela elogia a praticidade de resolver suas consultas e exames em um único dia.

"O bom é que eu saio daqui com o resultado na mão. Normalmente eu procuro mais o particular. Se eu passar mal, uma coisa rápida, aí eu procuro a UPA [Unidade de Pronto Atendimento]. Recentemente tive que ir na UPA e fui muito bem tratada, fiz exame de sangue e de urina, mas exames mais cuidadosos, eu preciso pagar pra ter uma coisa mais rápida", avalia.

Se eu for ao [serviço] público, vou fazer uma consulta e daqui mais um mês eu vou conseguir fazer os exames, então já ficaria ruim para mim."
Rafaela Pereira, usuária de clínica particular popular

Sobrecarga do SUS

De acordo com o pesquisador da UFRJ, o uso de clínicas de saúde particulares populares alivia emergências dos pacientes, mas não significa que eles deixem de sobrecarregar o SUS.

As pessoas não deixam de usar o SUS para usar o plano de saúde, principalmente nesses planos baratos e populares com coberturas restritas, que costumam negar autorização para procedimentos mais complexos."
Leonaro Mattas, pesquisador da UFRJ

Clebio Augusto de Souza, 64, realiza exames pré-operatórios em clínica particular - DataLabe - DataLabe
Clebio Augusto de Souza, 64, realiza exames pré-operatórios em clínica particular
Imagem: DataLabe

É o caso de Clebio Augusto de Souza, 64, que há cinco anos vive entre os preços das clínicas particulares e a demora dos exames no SUS. Cliente de uma unidade em Ramos, zona norte do Rio, ele disse não ver diferença na qualidade dos serviços prestados.

Às vésperas de fazer uma cirurgia, Souza realizou na clínica particular os exames de risco cirúrgico. "A cirurgia eu vou fazer lá no Hospital dos Olhos, um hospital público em Caxias. Se eu for fazer [os exames] por lá, vai demorar muito, então ganho tempo para fazer a cirurgia mais rápido."

Quando tem grana, eu agilizo o exame por fora nessas consultas populares. Quando tem uma consulta que não consigo pela SUS, eu venho aqui, é mais rápido. Venho aqui pelos valores e, no final, o resultado é o mesmo do [serviço de saúde] caro."
Clebio Augusto de Souza, 64, paciente de clínica particular popular

Teto de gastos

O sistema público de saúde brasileiro, criado pela Constituição, é um dos maiores e mais complexos do mundo e garante acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país.

Há quatro anos, a Emenda Constitucional 95, conhecida como a emenda do Teto de Gastos, instituiu o Novo Regime Fiscal, diminuindo os gastos com a saúde dos brasileiros no decorrer dos anos.

"Essa questão [das clínicas privadas] é totalmente coerente com a ideia do teto, que é restringir ao máximo o orçamento do SUS, torná-lo mais precário para que as pessoas tenham que recorrer a outras fontes", diz Mattos.

Boom de clínicas privadas nos subúrbios

Abertura de estabelecimentos privados de saúde nos subúrbios do Rio - data_labe - data_labe
Abertura de estabelecimentos privados de saúde nos subúrbios do Rio
Imagem: data_labe

A Área de Planejamento 3.1 do Rio, onde moram as pessoas entrevistadas para esta reportagem, engloba os bairros de Bonsucesso, Maré, Ramos e Manguinhos. Nessa região, segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e análise feita pelo data_labe, existem na área 293 estabelecimentos de saúde em geral.

A maior participação é da rede privada, com 83% do total, sendo que estes estabelecimentos são em sua grande maioria consultórios isolados ou clínicas.

Como ilustra o gráfico acima, enquanto a criação de estabelecimentos públicos segue estável com o tempo, mais de 50% dos estabelecimentos privados foram abertos depois de 2015, quando se intensifica o estrangulamento do financiamento do SUS que culmina com a PEC do Teto de Gastos.

É a partir desse período que se nota um aumento significativo de estabelecimentos de saúde influenciada pela abertura de clínicas de exames e diagnósticos da esfera privada.

Os dados do CNES revelam, ainda, uma característica da disposição geográfica dos estabelecimentos, que tendem a não se estabelecer em bairros onde vivem a população mais vulnerável: quase nenhum deles fica nas favelas da Maré ou de Manguinhos.

*Edição: Fred Di Giacomo. Dados: Paulo Mota Jr. Arte: Nicolas Noel

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