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Costura política ou ação estrangeira: especialistas analisam opções para futuro do Líbano

10/08/2020 11h33

Quase todas as potências mundiais responderam ao apelo de ajuda ao Líbano, mas não é certo que todas tenham agido por razões humanitárias. A afirmação é do jornal francês Libération, que analisa na edição desta segunda-feira (10) os riscos de ingerência externa após a dupla explosão ocorrida na semana passada no porto de Beirute.

Encravado entre a Síria e Israel e aberto ao mar Mediterrâneo, o Líbano é um local privilegiado para quem deseja expandir sua presença na região, recorda o Libération. "Neste momento de emoção provocada pela tragédia, os líderes estrangeiros falam em ajudar a população libanesa, mas o que se prepara pode ser uma reconfiguração das zonas de influência no Oriente Médio", escreve o jornal.

Entrevistado pelo diário progressista francês, o historiador Henry Laurens, especialista em mundo árabe no Collège de France, diz que a visita presidencial de Emmanuel Macron a Beirute, na quinta-feira (6), "se encaixa perfeitamente no quadro das relações franco-libanesas".

O pesquisador está entre aqueles que estimam que os franceses desempenham um papel especial na história do Líbano e não o de um país colonizador. Ele insiste, como têm dito outros analistas de geopolítica e história, que existe uma forte relação emocional entre a França e o Líbano, pelo menos desde a primeira metade do século XIX. "As sociedades francesa e libanesa ainda estão interligadas. Os filhos da burguesia libanesa frequentam escolas de língua francesa e o componente libanês está bastante presente na sociedade francesa", destaca Laurens.

Na opinião do historiador, os franceses são frequentemente acusados de terem iniciado uma política de divisão no Oriente Médio, mas isso se aplica mais à Síria do que ao Líbano. Ele argumenta que a lógica religiosa na organização política já existia no Líbano antes de 1914. Comunidades cristãs, especialmente católicas, pediram que a França assumisse a gestão do Líbano depois da Primeira Guerra Mundial e a fragmentação do Império Otomano. Os sunitas eram bastante hostis a isso, lembra o professor, porque se inclinavam para um nacionalismo árabe unitário e uma união com a Síria. Quanto aos xiitas, eles queriam acima de tudo impedir que o Líbano se fundisse com uma Síria amplamente dominada por sunitas, garantindo maior influência xiita em um pequeno território libanês.

As duas décadas de mandato francês no Líbano foram complexas, recorda Laurens. "Houve protestos e cooperação entre as elites libanesas e as autoridades francesas", constata. Mas, hoje, os laços entre a França e o Líbano são múltiplos, garante o historiador. A comunidade xiita do Líbano, antes marginalizada e pobre, se aproximou dos extratos francófonos da sociedade. Todas as comunidades religiosas libanesas construíram um relacionamento com a França. "Não é mais um monopólio dos cristãos", afirma.

Depois da guerra civil, e até o início dos anos 2000, a estratégia francesa se baseava na ideia de que, para proteger o Líbano, era preciso ter boas relações com Damasco. Sob a influência do ex-presidente Jacques Chirac, a política francesa se alinhou com a do ex-premiê sunita Rafiq Hariri, assassinado em um atentado em 2005. Paris começou a exigir a saída das forças sírias do Líbano e as coisas ficaram tensas. Mas, no geral, o interesse da França no Líbano continua acima de tudo cultural, estima o historiador. "O risco de ingerência é estrutural no Líbano, desde a independência até hoje", estima Laurens.

Abaixo-assinado pró-França e costura política

Segundo o jornal Le Figaro, 50.000 pessoas já aderiram no Líbano a um abaixo-assinado que pede à França para assumir novamente a gestão do país, como aconteceu durante o protetorado francês entre 1920 e 1941, sob mandato da Sociedade de Nações, o embrião da ONU. A visita imediata do presidente Emmanuel Macron a Beirute só causou ainda mais constrangimento ao presidente, ao primeiro-ministro e ao líder do Parlamento libanês.

Nos dias após a tragédia, nenhuma alta autoridade do país foi aos bairros afetados. A população ironizava que um presidente estrangeiro teve mais sensibilidade e empatia que qualquer político libanês.

Yann Kerbrat, professor de direito internacional na Sorbonne, não acredita que a França poderia exercer um tal papel na atualidade. "Mas, se a diplomacia francesa conseguir fechar um acordo com os demais membros permanentes (EUA, Reino Unido, Rússia e China) e não permanentes do Conselho de Segurança, as Nações Unidas poderiam decidir por uma administração internacional que confiaria algumas responsabilidades a certos países", afirma Kerbrat. "Nada indica que a França queira tocar sozinha a partição libanesa, e lutar no Conselho de Segurança, possivelmente negociando outros interesses diplomáticos para ajudar o Líbano", pondera.

O especialista estima que o mais provável, no entanto, é a adoção de sanções contra o atual governo libanês, econômicas ou políticas. Outra alternativa poderia ser contar com estruturas já existentes, como a missão Unifil das Nações Unidas, presente no Líbano há vários anos. O Conselho de Segurança poderia encarregá-la de distribuir ajuda humanitária, mas novamente, isso somente poderia acontecer se nenhum acordo político for alcançado com as autoridades locais.

Na avaliação de Kerbrat, a solução para superar a imensa desconfiança da população no governo libanês será um arranjo político.

Para Michel Santi, ex-assessor do Banco Central do Líbano, o abaixo-assinado dos libaneses demonstra o desejo de acabar com um sistema corrupto que a onda de protestos iniciada em setembro de 2019 não foi capaz de derrubar.

O líder da igreja maronita (cristã) no Líbano, Béchara Rai, publicou uma carta refletindo sobre o desastre de terça-feira. Ele incentivou "países amigos e irmãos, bem como às Nações Unidas, a fornecerem ajuda imediata para salvar a cidade de Beirute".

"O Líbano, que ofereceu o alfabeto ao mundo, merece o apoio de seus irmãos e amigos para ajudá-lo a reconstruir sua capital, por meio da criação imediata de um "fundo sob o controle da ONU" para administrar a ajuda internacional", defendeu o líder religioso.

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