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Repórter do UOL no RS: 'Deu calafrio ver Porto Alegre como cidade-fantasma'

do UOL

Hygino Vasconcellos

Colaboração para o UOL, em Porto Alegre

08/05/2024 13h13Atualizada em 08/05/2024 17h29

Há três anos moro em Santa Catarina. Até a terça-feira da semana passada, acompanhava como os demais brasileiros a tragédia do Rio Grande do Sul, onde vivi a maior parte da minha vida. Naquele dia, os relatos de estragos do temporal ainda eram esparsos e não fugiam muito da falta de luz, queda de árvores e bloqueios de estradas.

No feriado do Dia do Trabalho, mandei mensagem para minha irmã, Cristine, que vive em Lajeado, no Vale do Taquari, uma das regiões mais atingidas pelas duas últimas enxurradas. Cristine reside com o marido em uma região alta, sem risco de ser atingida pela água.

"Verdadeiro caos", resumiu por mensagem. "Tiramos o carro da garagem, porque fica no subsolo onde tem bomba da água da chuva. Caso falte luz e continue a chover, não corremos o risco de perder o carro", complementou. Fora isso, eles estavam bem - com água, luz e internet. Naquele dia, o Rio Taquari já passava a marca de 30 metros, superando o registrado na enchente anterior.

Na quinta-feira (2), recebi da minha irmã uma foto que viralizou nas redes sociais. Nela, a Havan de Lajeado estava tomada pela água e parte da ponte que fica a poucos metros da loja estava parcialmente submersa.

Dois dias depois veio o baque. Estava de plantão e soube que minha tia Rose havia perdido tudo. Ela mora no bairro Mathias Velho, em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre. A cidade é cortada pela BR-116 e pela linha do trem - que corre em paralelo com a rodovia - e a maior parte da área atingida é formada por casas ou prédios populares.

"Só saí com uma coberta, muda de roupa e documento", disse minha tia, por mensagem de voz. Me arrepiei.

"O bairro inteiro está debaixo d'água, a gente perdeu tudo", disse meu primo, filho da Rose. Os dois moram em casas próximas uma da outra, mas não muito longe do Rio dos Sinos. Porém, havia um dique que continha o avanço da água. Apesar dos estragos, eles estavam bem.

Na segunda (6), fui de carro para Porto Alegre acompanhar mais de perto a tragédia. Fui sem saber como estariam as estradas. No caminho, já me deparei com veículos da Força Nacional, que se dirigiam ao Estado, enviados para auxiliar nos resgates. Passando pelo litoral, nas cidades de Torres e Capão da Canoa, vi um movimento atípico de "forasteiros", que atenderam o pedido do prefeito Sebastião Melo para deixar a capital gaúcha.

Mas foi só no caminho de Capão da Canoa para Porto Alegre - na RS-040 - que a situação saltou aos olhos. No meio do percurso, parei em um restaurante em Capivari do Sul, por volta das 21h30. O local estava abarrotado, com todas as mesas cheias e filas para ir ao banheiro. Ali conversei com catarinenses de Florianópolis que estavam indo para a capital gaúcha auxiliar nos resgates. O grupo de amigos levava inclusive um barco.

Dali em diante, a RS-040 estava lotada de veículos, que formavam longas filas. Eu nunca tinha visto nada igual - no verão as pessoas costumam pegar outra estrada, a BR-290, conhecida por freeway, por ter mais pistas e velocidade máxima permitida maior. Porém, devido às chuvas, a saída para a rodovia federal está fechada, fazendo com que a RS-040 seja a única rota de fuga.

Porto Alegre, uma cidade-fantasma

Cheguei a Porto Alegre um pouco antes da meia-noite. E, conforme fui avançando em direção ao centro, os sinais da tragédia foram se revelando. O Arroio Dilúvio - que corta a cidade de leste para oeste - estava com nível acima do normal, próximo do transbordo. E logo após já comecei a me deparar com cavaletes, sinalizando que não poderia avançar por aquele caminho.

Senti calafrios ao me aproximar da região central da cidade e me deparar com a escuridão total. Era uma cidade-fantasma, com quase nenhuma circulação de veículos e de pessoas. E o hotel onde eu iria ficar, na região central, estava às escuras e fechado. Pensei em descer do carro, bater à porta e chamar um funcionário. Mas ao tirar a chave da ignição, o breu tomava conta. Ia ou me arriscava? Não hesitei.

Passei a mão no telefone e pedi abrigo na casa de um amigo. "Estou sem água, mas com luz e internet." Há dois dias, ele estava tomando "banho de gato", com lenço umedecido. Policial civil, não tem como deixar a cidade. Ele esperava a chuva prevista para esta quarta-feira para encher baldes e dar descarga nos banheiros.

No dia seguinte, fui em busca de outro lugar para ficar. Passei por cinco hotéis, mas estavam fechados ou totalmente ocupados. Liguei para outra amiga, que mora em uma casa na zona sul de Porto Alegre. Porém, estava sem luz e água há dois dias.

"Estou usando a água da piscina para o banheiro, por exemplo." Ela tem uma pequena casa no litoral, mas se resignava a ir para a praia mesmo com os serviços básicos comprometidos na capital. "Vou esperar um pouco só para ver se volta a água."

Acabei achando um hotel com água e luz e me hospedei ali. Combinação de luxo, pensei comigo, diante do contexto que está sendo vivido na região. No caminho, reparei que havia mais pontos de bloqueio nas ruas do entorno da Avenida Ipiranga por conta dos alagamentos. "Isso foi de ontem de noite (segunda-feira) para hoje (terça)", me disse um policial militar na Avenida Praia de Belas.

Lembrei que uma amiga morava não muito longe dali e acabei conseguindo contato com ela à noite. Moradora do bairro Menino Deus, na área central da cidade, ela deixou o apartamento após a falta de luz e foi para a casa da irmã, na zona norte de Porto Alegre. Porém, deixaram o lugar às pressas após circular um boato do rompimento de um dique no bairro Sarandi. "Entramos em pânico e viemos para a praia".

De noite, vi na televisão imagens aéreas do Quarto Distrito - uma região de Porto Alegre que era predominantemente industrial e que, aos poucos, vem ganhando o interesse de construtoras para erguer edifícios residenciais. Em um desses prédios, mora um casal de amigos com as duas filhas - uma de pouco mais de um ano e outra de 4 anos.

A família mora no 15º andar e, no sábado pela manhã, minha amiga postou um vídeo da sacada mostrando a portaria alagada. No pátio, era possível ver um carro quase que completamente coberto. Até então, eles tinham água e luz em casa. Porém, à tarde já não havia mais energia elétrica. Ainda havia água no reservatório, mas com iminência de desabastecimento.

A família acabou ficando no apartamento até segunda-feira (6), quando foi resgatada por agentes do Exército. A água não parava de subir e havia risco de ficarem sem suprimentos.

"Foi cena de filme. Ficamos entre 3 e 4 horas para fazer todo o resgate, de chegar em terra firme". De lá, a família foi primeiro para casa de amigos, ainda em Porto Alegre. E ontem, também decidiram ir para o litoral gaúcho. "Aqui pelo menos tem água e luz e comida nos supermercados. Não sabemos quantos dias nós vamos ficar."

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