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Ele foi raptado quando bebê, viveu em Israel e achou sua família no Brasil

Or com a tia no aeroporto de Curitiba (à esquerda) e quando bebê, em Israel (à direita) - Fred Holtz e Arquivo pessoal
Or com a tia no aeroporto de Curitiba (à esquerda) e quando bebê, em Israel (à direita) Imagem: Fred Holtz e Arquivo pessoal
do UOL

Jess Carvalho

Colaboraçao para o UOL

06/05/2024 04h00

Or Hillel, de 38 anos, teve só recentemente acesso a uma parte da sua história que ficou oculta por muitos anos. O barbeiro, que cresceu em Israel, descobriu que, na verdade, era brasileiro —e encontrou sua família biológica no Paraná.

Ele foi sequestrado e levado a Israel quando ainda era um bebê. Em fevereiro deste ano, abraçou pela primeira vez um parente "de sangue". O vídeo do encontro de Or com a tia, Márcia Regina Radaskiewicz de Lima, 54, no Aeroporto Afonso Pena, na região metropolitana de Curitiba, viralizou no TikTok.

Venda por 10 mil shekels israelenses

O rapaz acredita ter sido vítima da quadrilha de Arlete Hilú, líder de um esquema de tráfico de bebês no Brasil. Nos anos 1980, com a conivência do poder público, ela vendeu milhares de crianças brasileiras para famílias israelenses que não conseguiam ter filhos.

Segundo Or, seus pais adotivos já não se recordam mais do valor exato, mas pagaram mais de 10 mil shekels israelenses —o equivalente a mais de R$ 13 mil, na cotação atual— para levá-lo.

Or - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Or e a tia, Márcia: encontrar o sobrinho foi uma 'sensação de missão cumprida'
Imagem: Arquivo pessoal

Or soube que era adotado aos cinco anos de idade. "Ainda me lembro de tudo o que meus pais me contaram", diz ele, repetindo a frase que mais o impactou:

"Os filhos vêm do ventre da mãe, nós te amamos, mas você veio do ventre da sua mãe."

Os pais adotivos de Or disseram a ele que, em 1982, tiveram uma menina, mas ela nasceu com uma doença sem cura e morreu. "Depois de um tempo, eles tentaram trazer outro bebê ao mundo, mas não deu certo. Ao saberem que havia adoções de bebês do Brasil —e naquela época eram muitas—, eles também quiseram."

'Nunca trouxe bebê para casa'

A mãe biológica de Or chama-se Rosália. Ela engravidou aos 16 anos de um caminhoneiro cuja identidade nunca chegou ao conhecimento da família.

"Ela morava em uma vila muito pequena de São Mateus do Sul [interior do Paraná]", diz Eliane de Lima Caus, 51, prima de Rosália. "Duas vizinhas bateram na casa da mãe da Rosália e perguntaram se ela queria doar a criança da filha —ela disse que sim."

Grávida, Rosália foi levada a Curitiba pela mãe, sob o pretexto de que precisava fazer exames. Ao chegar lá, foi submetida a uma cesárea sem o seu consentimento —e o bebê foi, então, levado para a "adoção".

"Ela dizia que ficou trancada no segundo andar de um prédio próximo à rodoviária", lembra a prima. Desesperada, Rosália teria pulado a janela e voltado para casa de carona.

Or - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Or e Eliane: família se encontrou em fevereiro
Imagem: Arquivo pessoal

"A mãe da Rosália voltou de ônibus, com um pouco de dinheiro", diz Eliane. "Ela chegou em São Mateus dizendo que o bebê era lindo, mas nunca trouxe ele para casa."

A certidão de nascimento de Or aponta que ele veio ao mundo no dia 1º de fevereiro de 1986, na antiga maternidade Nossa Senhora do Rosário, em Curitiba.

'Aparência era péssima'

Or - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Or na infância; ele cresceu em Israel e soube aos 5 anos que era adotado
Imagem: Arquivo pessoal

Seus pais adotivos vieram ao Brasil para recebê-lo, com medo de que ele não chegasse a Israel. O casal ficou hospedado na casa de amigos no Rio, e foi lá que o bebê e os papéis da "adoção" foram entregues.

Quando meus pais me receberam, eu tinha cerca de duas semanas de vida e minha aparência era péssima. Eles me disseram que eu estava desnutrido e muito fedorento, porque ninguém tinha trocado a minha roupa e nem me alimentado.
Or Hillel

Em Israel, ele passou por cuidados médicos e teve uma infância saudável. Ele conta que viveu bem e recebeu tudo o que precisava dos pais adotivos —e ainda tem uma boa relação com ambos. Mas se sentia diferente deles e do resto da família.

Aos 16 anos, Or pediu seus documentos de adoção aos pais para renovar seu passaporte. E foi então que ele procurou a embaixada do Brasil em Israel.

Ele afirma que um embaixador prometeu ajudá-lo, mas nunca mais entrou em contato. Mais tarde, também por meio de grupos de Facebook, o barbeiro conheceu outros adotados —a maioria nunca encontrou a família biológica.

Or - Fred Holtz - Fred Holtz
Or com a tia, Márcia, na chegada do aeroporto
Imagem: Fred Holtz

'Valeu cada momento'

Ele e sua família brasileira se conectaram por meio de um grupo de Facebook cujo foco é juntar pessoas sequestradas por ação de Hilú a suas famílias de origem. Or, que já foi soldado e agora trabalha como barbeiro na cidade de Harish, a 70 km de Tel Aviv, em Israel, fez uma publicação contando sua história e procurando pela mãe, com o documento de adoção em anexo.

Não demorou muito para eu ver os comentários de uma pessoa chamada Márcia. Ela afirmava que, de acordo com o nome da mãe biológica e o ano de nascimento no documento, eu poderia ser seu sobrinho.

O barbeiro diz que foi difícil acreditar que tivesse mesmo encontrado sua tia, mas mandou uma mensagem para ela e tentou se manter otimista. Depois que já estavam em contato, ambos fizeram testes de DNA.

Quando veio a confirmação, Or comprou as passagens para o Brasil.

Meu voo foi longo, demorou 24 horas, mas tudo o que eu queria era chegar e conhecer a família. Foi muito difícil mentalmente fazer toda essa jornada sozinho, sem conhecer o idioma. Não sei de onde tirei forças, mas valeu a pena cada momento.

"Conheci um país lindo, conheci pessoas incríveis e, claro, conheci minha família. Elas me deram um lugar para dormir, cuidaram de tudo o que eu precisava, me ofereceram seu tempo e, o mais importante, compartilhamos prazer e muito amor", diz.

"Com o passar do tempo, meu amor por eles só cresce."

Mãe biológica está desaparecida

Or só lamenta a impossibilidade de conhecer a mãe biológica. Rosália de Lima segue desaparecida desde o começo da década de 1990. A família diz que ela tinha transtornos mentais e costumava fugir de casa. Certa vez, não voltou.

A mãe de Rosália já morreu —as vizinhas que a aliciaram para vender a criança também.

"Quando eu o vi, tive uma sensação de missão cumprida", diz Márcia, que mora em São Mateus do Sul e trabalha em uma beneficiadora de batatas.

Após o desaparecimento da irmã, ela tomou para si a missão de encontrar o sobrinho. "Quando o abracei, senti como se estivesse abraçando ele e a mãe dele ao mesmo tempo."

Morte de Arlete

Hilú morreu em dezembro de 2023, no interior de São Paulo. Ela foi condenada por tráfico de crianças, falsidade ideológica, formação de quadrilha e por retirar crianças do Brasil ilegalmente. Nos últimos anos de vida, morava em um abrigo para idosos.

"Muitos adotados têm raiva dela. Eu não fico bravo com o que ela fez, mas com como ela fez", diz o barbeiro.

Para mim, ela [Arlete Hilú] fez do jeito mais horrível possível. É verdade que eu tive uma boa vida em Israel, mas não é assim que deveria ter sido.

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