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Milícia no Rio expande negócios e atua até em mineração e empréstimos

Otávio Silveira
Imagem: Otávio Silveira
do UOL

Saulo Pereira Guimarães e José Dacau

Do UOL, em São Paulo

08/08/2022 04h00

Resumo da notícia

  • Investigações do Ministério Público mostram que a diversificação tornou as milícias mais poderosas economicamente
  • Análise de 600 documentos apontam para atuação de quadrilhas em imóveis, mineração, farmácias e prostituição

Saudadas como um mal menor quando surgiram, nos anos 1990, a pretexto de livrar comunidades da opressão de traficantes, as milícias que hoje dominam territórios onde vivem mais de 2 milhões de pessoas estão diversificando suas fontes de receita, misturando atividades legais e ilegais e tornando-se mais poderosas economicamente.

Durante três meses, o UOL dissecou investigações realizadas pelo MPRJ (Ministério Público do Rio de Janeiro), pela Receita Federal e por outros órgãos, além de analisar cerca de 600 documentos judiciais que apontam para a atuação dessas quadrilhas em setores como imóveis, mineração, farmácias e prostituição.

"As milícias começam a alcançar esferas que antes não alcançavam", diz José Cláudio Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio que estuda milícias há mais de 20 anos.

Da extorsão a moradores e comerciantes, gênese de financiamento das milícias em áreas antes dominadas pelo tráfico, esses grupos migraram para outras atividades, como o monopólio na venda de gás e na oferta do chamado gatonet. Mais recentemente investigações da polícia e do Ministério Público apontaram a ligação dos milicianos com a grilagem de terras e a construção clandestina de imóveis.

Agora, milicianos estão no comando de empresas de mineração, usam lojas de materiais de construção para multiplicarem seus lucros e lavam dinheiro por meio de farmácias e outras empresas —um império criado a partir do dinheiro extorquido nas favelas. Em algumas áreas, os criminosos baniram a venda de cigarros legais e estabeleceram um monopólio de fornecimento do produto pirateado.

"As milícias nasceram como grupo de extermínio nos anos 60/70, como uma força auxiliar - e ilegal - do estado para atuar no combate ao tráfico, mas isso é passado. Hoje elas são uma grande holding", afirma Cecília Olliveira, diretora-executiva do Instituto Fogo Cruzado (laboratório focado em registros sobre violência armada).

Ela diz que as milícias têm "presença em quase 60% dos bairros da cidade do Rio, além da Baixada Fluminense". "Ao aumentar seu domínio territorial, as milícias ampliam também suas possibilidades de negócios. E a tendência é que avancem mais e mais porque o Rio não tem um plano de segurança hoje."

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Imagem: arte UOL

Autos de processos judiciais mostram que os bandidos ficam com um percentual de toda a riqueza gerada em alguns dos territórios sob seu domínio e estendem seus tentáculos para além dessas regiões, cobrando taxas de trabalhadores autônomos que circulam pela cidade e impondo a compra de determinados produtos a lojistas por meio da força.

No caso dos milicianos, quem se recusa a colaborar ou tenta enganar os bandidos é morto para dar o exemplo. É uma fórmula do sucesso cruel e, até aqui, infalível. Em alguns casos, o objetivo é a lavagem de dinheiro. Em outros, a obtenção de mais recursos. Em todos, quem perde é a sociedade.

Cecília afirma ainda que as eleições são fundamentais para esses grupos. "Não há dúvidas de que milicianos irão se candidatar."

Conheça os tentáculos da milícia.

Mineração irregular

Uma das novas atividades econômicas das milícias cariocas veio à tona depois que a empresa Macla Extração e Comércio de Saibro entrou no radar dos investigadores. A companhia, que explora saibro (matéria-prima de construção civil), tem como dono Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho, um dos chefes da Liga da Justiça. A milícia domina a zona oeste do Rio. Zinho está foragido.

A Macla foi investigada pelo Ministério Público Federal por extração, transporte e venda ilegal de saibro numa área na rua da Manga, em Santa Cruz (zona oeste do Rio).

A pedido dos investigadores, o órgão ambiental estadual realizou uma vistoria no local. Ao se depararem com a fiscalização, homens que trabalhavam na extração fugiram, abandonando uma retroescavadeira e dois caminhões (avaliados em centenas de milhares de reais), usados pela Macla.

Informações fornecidas pela Prefeitura do Rio após visita ao local indicaram escavações de grande porte na encosta, sem as devidas licenças, assim como remoção da vegetação nativa.

A investigação de crime ambiental, entretanto, acabou arquivada em 2019 porque o Ministério Público Federal não conseguiu identificar os responsáveis pela exploração da região.

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Rua da Manga, em Santa Cruz (RJ), onde milicianos, segundo investigações, extraiam saibro ilegalmente
Imagem: Reprodução/ Internet

Numa outra investigação, desta vez de promotores do Ministério Público do Estado do Rio, a Macla foi apontada como parte de um esquema de lavagem de dinheiro dos milicianos da Liga da Justiça.

Segundo os promotores, pelo caixa da empresa passavam até R$ 10 milhões por mês —a origem seria de dinheiro obtido com extorsão praticada contra moradores e comerciantes de áreas da milícia.

"Sempre que se usa qualquer instrumento para ocultar a origem ilícita de um bem, estamos falando de lavagem de dinheiro", explica o advogado Pierpaolo Bottini, um dos autores do livro "Lavagem de Dinheiro - Aspectos Penais e Processuais Penais" (editora Revista dos Tribunais).

A acusação de lavagem deu origem a um processo judicial. Em junho deste ano, Zinho foi absolvido em primeira instância e os bens da Macla, congelados desde 2019, foram desbloqueados. O Ministério Público do Rio não recorreu da decisão, segundo apurou o UOL.

Procurada, Leonella Vieira, que é advogada de Zinho, preferiu não se manifestar publicamente, alegando que o processo correu em segredo de Justiça. O Ministério Público também se recusou a comentar o caso.

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Imagem: ARTE UOL

Material de construção

Um mesmo endereço na favela da Muzema, no Rio, serve como sede a diferentes empresas apontadas pelo Ministério Público do Estado em nome de "laranjas" da milícia de Rio das Pedras.

Na Receita Federal, a São Felipe Construção Civil pertence a Benedito Aurélio Carvalho, que foi denunciado em 2019 pelo MP do Rio. A firma foi apontada como elo entre os envolvidos com a milícia.

A loja era usada para "baratear o custo da construção dos imóveis" controlados pela milícia, segundo a denúncia apresentada pelo Ministério Público, já que o CNPJ da empresa permitia a compra de material por menor preço.

No mesmo local fica a ConstruRio Mz, outra loja ligada à milícia, segundo a Promotoria. Um de seus sócios, Isamar Moura, também é apontado como "laranja" da quadrilha.

Em 2018, quando a São Felipe estava tentando regularizar sua documentação junto à Subprefeitura de Jacarepaguá (zona oeste do Rio), os investigadores obtiveram uma conversa interceptada, com autorização judicial, em que milicianos discutiam o pagamento de propina a um funcionário da prefeitura para agilizar a documentação. Procurada, a prefeitura informou que não se manifestaria porque o nome do agente supostamente envolvido não foi revelado.

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Imagem: arte UOL

Extorsão ampliada

Se antes a extorsão das milícias se voltava basicamente contra moradores e comerciantes das áreas sob seu domínio, as autoridades do Rio reuniram evidências de que os criminosos passaram a arrancar dinheiro também de prestadores de serviços externos. Um dos casos —o de um entregador de supermercado que se recusou a pagar a "taxa"— resultou em morte.

Em 11 de novembro de 2017, José Carlos da Silva foi morto a tiros na rua Capitão Rubens, em Marechal Hermes (zona norte do Rio). A vítima liderava um grupo de 24 motoristas que faziam fretes em um supermercado de Vila Valqueire, bairro vizinho.

Em agosto daquele ano, 18 de seus colegas registraram uma ocorrência na 30ª Delegacia Policial (Marechal Hermes) denunciando extorsão por parte de Edmilson Gomes Menezes, Marcos Gileno Pereira e Wagner Evaristo Junior, apontados como membros da Milícia do Campinho.

"A razão [do crime] foi o fato de a vítima não ter concordado em pagar o valor de R$ 30,00 diários de 'taxa de segurança', quantia exigida pelos milicianos do Morro do Fubá", afirmou a denúncia do MPRJ sobre o caso.

Primeiro, os três acusados obtiveram uma vitória na primeira instância, quando o juízo da 3ª Vara Criminal do Rio entendeu que não havia elementos suficientes para levá-los a júri popular. O MP recorreu e conseguiu reverter a decisão em turma do Tribunal de Justiça, que, por unanimidade, determinou o julgamento pela acusação de homicídio.

"Os três apelados integravam grupo paramilitar de 'milícia' e cobravam 'taxa de segurança' de motoristas da região", escreveu o desembargador Sidney Rosa da Silva, em seu voto no julgamento da apelação da Promotoria.

"A recusa da vítima em pagá-la resultou em sua execução, perpetrada por eles", diz o magistrado.

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Imagem: Arte UOL

Imóveis, furtos de energia e agiotagem

Uma interceptação telefônica realizada pela polícia em 15 de outubro de 2018 registrou a negociação de um imóvel por Manoel de Brito Batista, o Cabelo, apontado pelo MPRJ como braço-direito de Adriano da Nóbrega na milícia de Rio das Pedras. Nóbrega foi morto durante uma operação da polícia, na Bahia, em 2020.

No telefonema, uma mulher não identificada pergunta o valor do aluguel de um apartamento no Bosque das Pedras, condomínio situado na zona oeste do Rio. Batista responde que tem um imóvel de dois quartos no local por R$ 1.300.

"Com [taxa de] condomínio?", ela pergunta.

"Não paga luz, não paga condomínio, não paga água, não paga nada", explica ele.

Para o MP, a ligação mostra que a milícia furtava energia e água das concessionárias.

Outra atividade econômica que passou ao controle de milicianos foi a de "empréstimos a juros exorbitantes", para usar a expressão usada pelo Ministério Público no relatório de uma das investigações.

A milícia que domina as favelas da Muzema e de Rio das Pedras usou a empresa Cred Tech Negócios Financeiros para movimentar mais de R$ 3,6 milhões entre agosto de 2018 e abril de 2020.

Um dos sócios é Rodrigo Bittencourt do Rego, integrante da milícia liderada por Adriano Nóbrega. Segundo o MP, devedores da Cred Tech tiveram bens "confiscados" pela milícia.

Em 2019, 24 pessoas morreram após o desabamento de dois prédios irregulares na Muzema.

Bebidas e cigarros

De acordo com investigações do MP do Rio, as milícias já estão no controle da distribuição de bebidas e cigarros pirateados na zona oeste do Rio.

Num dos casos, os investigadores afirmam que uma empresa chamada Lucho Comércio de Bebidas foi usada para lavar dinheiro do crime.

Segundo o MP, o policial militar Rodrigo Bittencourt do Rego figurava entre os sócios da empresa até a morte de Adriano da Nóbrega —com a morte do chefe da milícia, o controle da Lucho foi repassado a David de Mello Lotufo e Lucas Mello Lotufo.

Os dois são irmãos de Julia Lotufo, viúva de Nóbrega e apontada pelo Ministério Público como responsável por administrar o patrimônio deixado por ele. Os promotores afirmam que a Lucho foi constituída a partir de lucros obtidos pela quadrilha por meio de atividades criminosas.

Numa outra frente, os milicianos impuseram uma espécie de monopólio da venda de cigarros em algumas comunidades.

"Em vários locais, as milícias proíbem a venda do cigarro legal e impõem a venda do produto ilegal, fornecido por eles. Às vezes, é vendido pela metade do preço, já que não paga impostos", diz o presidente do Fórum Nacional contra a Pirataria e a Ilegalidade, Edson Vismona.

Outro problema é que os produtos clandestinos não passam por controle de saúde nem de produção.

De acordo com a entidade, a venda de cigarros clandestinos no estado do Rio movimentou R$ 515 milhões em 2021 e causou uma perda de R$ 60 milhões à arrecadação de impostos.

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