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Esquerda francesa enfrenta fratura ideológica de ativistas adeptos da "cancel culture" americana

08/08/2020 07h31

A patrulha ideológica "Cancel Culture", nascida nos Estados Unidos e que faz das redes sociais verdadeiros tribunais para "cancelar" uma figura pública em razão de declarações ou comportamentos considerados "politicamente comprometedores", tem atingido personalidades francesas e provocado debate entre progressistas.

A revista semanal L'Obs questiona se não existe uma nova forma de censura nos defensores dessa corrente, principalmente depois de um episódio que causou a demissão do secretário-adjunto da Cultura da prefeitura de Paris.

O ex-secretário Christophe Girard renunciou ao cargo depois de ser visado por uma campanha de protestos e tuítes disparados por ativistas neofeministas e ecologistas franceses. Ele foi acusado de conivência com o escritor Gabriel Matzneff, investigado pela Justiça por apologia da pedofilia e estupro de menores.

Girard admitiu que foi amigo do escritor e há suspeita de que tenha ajudado Matzneff a encobertar crimes de pedofilia na década de 1980. A feminista radical Alice Coffin, que acaba de ser eleita para o Conselho Municipal de Paris pelo partido ecologista, liderou a campanha que resultou na renúncia do secretário.  

Ao anunciar sua demissão, em 23 de julho, o ex-colaborador da prefeita de Paris afirmou que não deixava o cargo cedendo a pressões, mas por conhecer "muito bem" as dificuldades que iria enfrentar se continuasse atuando na equipe municipal, em alusão ao movimento "cancel culture" e ao linchamento que estava enfrentando nas redes sociais.

O caso leva a revista L'Obs a analisar como o movimento "cancel culture" ganhou espaço na França desde 2012, entre neofeministas, militantes LGBT, antirracistas e verdes. Conferências universitárias e peças de teatro têm sido canceladas.

"Pessoas têm sido censuradas e condenadas sem processo judicial, apenas pelo ódio disseminado por ocuparem posições de destaque na sociedade e pela necessidade de desconstruir o poder a qualquer preço", escreve a L'Obs. Para a revista, por trás da boa intenção de corrigir discriminações se propaga uma ideologia que atinge partidos, universidades e começa a interferir na linha editorial da imprensa e da mídia em geral.

Ações extremas

Vários exemplos recentes sobre os impactos da "cancel culture" na França são citados no artigo. Em março de 2019, a tragédia grega "As suplicantes", de Ésquilo, não pôde ser interpretada na Sorbonne depois de militantes antirracistas se insurgirem contra atores que usavam máscaras negras na peça, mas que nada tinham a ver com a "blackface". Eram máscaras milenares da arte teatral e não rostos pintados com tinta escura para ridicularizar pessoas negras para o entretenimento de brancos.

Uma estátua do abolicionista Victor Schoelcher foi destruída na Martinica, em maio de 2020, porque ele era branco. A filósofa Sylviane Agacinski, conhecida por suas reflexões sobre a alteridade sexual - estudos que a levaram a se posicionar contra a adoção de crianças por casais homossexuais, a barriga de aluguel e a reprodução assistida para mulheres lésbicas e solteiras - foi obrigada a cancelar conferências depois de receber ameaças do movimento neofeminista. Seu direito de discordar de um debate foi censurado.

A revista francesa, de linha editorial progressista, lembra que a radicalização do "politicamente correto" nasceu na esquerda americana na década de 1960, preocupada com a violência transmitida pelo vocabulário ou pelo alinhamento à ortodoxia marxista do Partido Comunista Americano.

Anos mais tarde, a "cancel culture" tornou-se uma violência que se exerce em nome de um mundo melhor, escreve a L'Obs com certa incompreensão. "Atualmente, na esquerda, existem testes de todo tipo para determinar se uma pessoa é suficientemente 'woke' [consciente de questões raciais e outras discriminações]. Aqueles que fracassam são submetidos a sanções ou à contrição pública."

Para estudiosos desse movimento nos dois países, como a americana Charity Hudley, da Universidade de Santa Bárbara, na Califórnia, ou Alice Coffin, jornalista, militante feminista e agora representante ecologista no Conselho Municipal de Paris, a "cancel culture" seria apenas uma ferramenta útil para ativistas quando o questionamento das desigualdades estruturais pelos meios políticos tradicionais fracassa.

O "cancelamento", assim como a noção de "privilégio branco" são alavancas de mobilização, diz a americana, visando chamar a atenção para a lacuna entre as posturas políticas progressistas que defendem a igualdade e as discriminações reais no cotidiano.

Para a francesa, adepta dessa prática, a demissão do secretário da Cultura da prefeitura de Paris foi uma vitória do feminismo. Um combate que se inscreve na continuidade da conquista dos direitos civis americanos, em que apenas as campanhas de boicote, de resistência passiva e de ocupação de espaços são capazes de triunfar sobre o patriarcado branco.

"Mas crucificar, sem hesitação, um homem que não é acusado de nada [Christophe Girard], apenas por ter frequentado um escritor processado por apologia da pedofilia"  representa, na avaliação da L'Obs, algo perigoso.

Entrevistada para a reportagem, Christine Le Doaré, ex-presidente do centro LGBT de Paris, afirma não ter admiração alguma pelo que ela chama de "jet set" parisiense, o meio frequentado pelo ex-secretário da Cultura da capital. Mas ela discorda da maneira como Girard foi alvo do tribunal das redes sociais e do núcleo de inimigos na administração municipal. Sua trajetória de militante fez com que ela acompanhasse as mudanças em seu próprio meio. Inicialmente, os membros da bancada ecologista de Paris foram influenciados pela teoria "queer" e a obra da filósofa americana Judith Butler, que diferencia o tipo sexual biológico do gênero. Depois, passaram a utilizar a "cancel culture" como ferramenta. Mas Doaré não aprova esses métodos. "Para eles, uma acusação tem valor de condenação e qualquer reclamação só prova que o sistema promove a cultura do estupro. Como advogada, esta concepção da lei me choca!", afirma.

A reportagem da L'Obs mostra que os defensores dessa corrente na França -  alguns formados nos Estados Unidos antes de ganhar influência no território francês - têm provocado uma fratura ideológica. O modo de ativismo importado dos Estados Unidos tem batido de frente com outros valores da esquerda francesa, como os da liberdade de expressão e comportamento, sem censura de ideias, a presunção de inocência básica no Direito e o repúdio ao linchamento público nas redes sociais.

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