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Réu do 8/1 morto na Papuda expõe contaminação política dos direitos humanos

Cleriston da Cunha, de 46 anos, morreu após mal súbito na Papuda, em Brasília - Reprodução
Cleriston da Cunha, de 46 anos, morreu após mal súbito na Papuda, em Brasília Imagem: Reprodução
do UOL

Do UOL, em Brasília

11/12/2023 04h00

Morte de preso em 8 de janeiro causa inversão de papéis na defesa dos direitos humanos. Cleriston Pereira da Cunha caiu desacordado durante o banho de sol e agonizou por 40 minutos. O posto médico da Papuda estava fechado.

O que aconteceu

A direita, habitualmente contra melhorias no sistema carcerário, denunciou o caso como uma violação dos direitos humanos. Parlamentares e lideranças bolsonaristas foram ao enterro e houve convocação para protestos no final de semana seguinte.

Já a esquerda abandonou a luta em prol dos direitos humanos nas cadeias e agiu como se nada de errado tivesse acontecido. Políticos e instituições com histórico de denúncias de violações dos direitos dos presos silenciaram.

Não foi o sistema carcerário que mudou, ele continua desrespeitando direitos fundamentais. O que se alterou foi o cenário político.

Especialistas apontam a polarização entre Lula e Jair Bolsonaro como justificativa para a inversão de papéis nessa área. A reação de cada lado agora depende da orientação partidária da vítima.

Eles também criticam o Judiciário por permanecer alheio aos pedidos de detentos pobres. Além disso, nenhum organizador ou financiador do 8 de janeiro foi preso ou punido.

Existem dois pesos e duas medidas, sim. Infelizmente.
Vera Chaia, professora de ciência política da PUC-SP

Nos dois lados, na esquerda e na direita, nós temos leituras seletivas e enviesadas.
Eduardo Grin, cientista político e professor da FGV

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STF é criticado durante protesto em São Paulo contra morte de Cleriston
Imagem: Divulgação/Uesley Durães

Direita muda discurso

A direita sempre defendeu que "bandido bom é bandido morto". A bandeira mudou a partir das invasões às sedes do três Poderes.

A tentativa de golpe resultou na prisão de 2.151 apoiadores de Jair Bolsonaro (PL). Ele passaram a ser tratados como presos políticos por lideranças da direita. A classificação é criticada por especialistas por não refletir a situação de pessoas torturadas ou que pediam a volta da democracia.

Ao invocar os direitos humanos, o bolsonarismo busca dividendos políticos, avalia Carolina Botelho, cientista do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Bolsonaro participou de evento na Câmara na semana passada e usou a imagem de Cleriston. Ele discursou com a família do detento ao seu lado.

A atitude recente contrasta com o ex-presidente que já defendeu a ditadura e homenageou um torturador ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT).

Deputados da oposição também trocaram de papel e enviaram ofícios a autoridades denunciando violações aos direitos humanos após o 8 de janeiro. O documento foi elaborado pela deputada Carla Zambelli, que sacou uma arma e perseguiu um homem. Outros 18 deputados assinaram o documento.

Bolsonaro, se trouxer o histórico dele, é engajado em liquidar os direitos humanos.
Carolina Botelho, pesquisadora da USP

jm - Reprodução/Twitter @CarlosBolsonaro - Reprodução/Twitter @CarlosBolsonaro
Bolsonaro já chamou direitos humanos de esterco da vagabundagem
Imagem: Reprodução/Twitter @CarlosBolsonaro

Esquerda se omite

Entidades ligadas aos direitos humanos não se pronunciaram sobre a omissão do Estado na morte do detento.

No dia seguinte à morte de Cleriston, a Anistia Internacional repercutiu a eleição na Argentina. A Conectas Direitos Humanos fez propaganda de uma "feira de ideias".

A Comissão Arns pediu um tuitaço contra um projeto da bancada do agro. Isso contrasta com atitude recente. Nesta semana, a entidade divulgou nota pedindo a libertação das pessoas presa na sessão da Assembleia Legislativa de São Paulo que aprovou a privatização da Sabesp.

A professora Vera Chaia classifica como sintoma da politização o silêncio de entidades.

Já o cientista político Eduardo Grin também viu a mudança de discurso. Antes, a esquerda defendia os direitos do preso, independentemente do crime cometido.

Para ele, preocupadas em serem confundidas com apoiadores da pauta bolsonarista, organizações e figuras públicas podem ter perdido o ímpeto de criticar o desrespeito.

Na data da morte de Cleriston, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, também comentava a eleição da Argentina no Instagram. Ela continuou ignorando o assunto nos dias seguintes.

O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, permaneceu em silêncio por dois dias. Quando se manifestou, fez propaganda de suas ações no ministério.

A esquerda faz vista grossa, como se isso [a morte de Cleriston] não fosse um desrespeito àquilo que existe de mais sagrado nos direitos humanos: o direito à vida.
Eduardo Grin, cientista político

Socorro demorado e sem equipamentos

Cleriston tinha doença cardíaca, diabetes e tomava remédios controlados. Ele já havia desmaiado várias vezes na cadeia. Por isso o Ministério Público Federal tinha recomendado que ele fosse libertado.

Ele tomava banho de sol quando caiu desacordado na manhã de 20 de novembro. Desesperada, a agente prisional enviou mensagens pedindo ajuda.

Era ponto facultativo no Distrito Federal, por isso a equipe estava reduzida na Papuda. Além disso, o posto de saúde se mantinha fechado. Cleriston foi atendido por outros presos.

Ele foi reanimado duas vezes por um detento que é médico. Mas não havia equipamentos para manter Cleriston estável. O relatório elaborado por defensores públicos após visita ao presídio da Papuda também ressaltou a precariedade.

O atendimento externo chegou somente depois de 25 minutos. A socorrista tinha apenas um aparelho de medir pressão e um estetoscópio. "Instrumentos inadequados para urgência médica", prossegue trecho do relatório.

Uma equipe com equipamentos mais avançados chegou 40 minutos depois. Cleriston já estava morto.

ikl - Marcelo Camargo/Agência Brasil - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Cleriston foi preso por participar das invasões às sedes dos três Poderes
Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Defensoria expôs problemas de saúde

Cleriston entrou desmaiado e algemado na Papuda. Os remédios para problemas cardíacos e diabetes dos quais dependia demoraram a ser providenciados.

Desde a detenção, foram pelo menos dez atendimentos no posto de saúde.

Muitas vezes Cleriston precisou ser carregado para o banho de sol. As regras da Papuda proíbem que um preso fique sozinho na cela.

Ele desmaiou diversas vezes enquanto esteve detido. Por causa de seu estado de saúde, o MPF (Ministério Público Federal) pediu sua liberdade provisória em 1º de setembro, ou seja, mais de dois meses antes da morte.

A família afirmou que Cleriston passou mal 33 vezes enquanto esteve na Papuda. Além das doenças crônica, ele desenvolveu vasculite - inflamação dos vasos sanguíneos - como sequela da covid-19.

Alexandre de Moraes não chegou a avaliar a sugestão do MPF para ele deixar a cadeia usando tornozeleira eletrônica.

O desleixo do Supremo é muito forte e [o pedido do MPF] tem que ser analisado, porque casos urgentes têm que transferir para unidade médica, hospital. Ele já foi preso em situação de saúde precária.
Wálter Maierovitch, professor de direito, desembargador aposentado e colunista do UOL

Justiça fechou os olhos

A morte de um preso entregue aos cuidados do Estado dá direito à família da vítima de receber indenização, afirma o ex-desembagador Wálter Maierovitch. Ele ressalta o histórico de saúde frágil e a falta de análise da libertação.

Maierovitch considera as liberações de detentos determinadas por Alexandre de Moraes depois da morte de Cleriston como uma tentativa de remendar a situação. "É um caso de fratura exposta e estão querendo colocar band-aid", comparou.

O ex-desembargador também comenta o péssimo estado das cadeias brasileiras. Estudo do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) mostra que, entre as principais causas de mortes naturais em cadeias, estão doenças do século passado como pneumonia e tuberculose.

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