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Grande desafio de Biden e Harris será convencer seu eleitorado a votar, diz cientista político

12/08/2020 16h29

"Uma candidatura de centrão": é assim que o cientista político da UERJ, Mauricio Santoro, avalia em entrevista à RFI a dupla formada pelo quase octogenário Joe Biden, nome tradicional do partido democrata norte-americano, e sua vice, a senadora Kamala Harris, 55 anos, negra, ex-procuradora-geral da Califórnia com experiência jurídica incontestável e histórico de mobilização antirracista. Nesse duo, a aposta é convencer os eleitores progressistas ou desiludidos com Trump a saírem de casa para ir votar em novembro, num contexto de pandemia e desencanto com os arcanos da política.

RFI: O que significa o xadrez político representado pela chapa formada por Joe Biden e Kamala Harris?

Mauricio Santoro: O grande tema de conflito político-social hoje nos Estados Unidos, além das questões ligadas à economia, é a violência policial e do racismo. Para Biden, é muito importante ter na chapa uma mulher que, para os padrões norte-americanos, é considerada negra. Mas, ao mesmo tempo que ela faz parte de uma minoria étnico-racial, Harris tem um histórico como promotora-geral da Califórnia que é até bastante conservador nas questões ligadas à segurança pública, à lei e à ordem. Mas sua atuação como senadora é bastante progressista, em termos sociais e econômicos. É uma mistura muito interessante, e poderosa, em termos eleitorais. Por um lado, ela sinaliza uma vontade de conversar sobre racismo e questões ligadas à segurança pública, mas sem abraçar uma agenda mais radical, de hostilidade à polícia. Passa um certo sentimento de conforto para um eleitor mais conservador, que está insatisfeito com o Trump, mas também tem medo de votar num democrata que se posicione mais à esquerda. É uma chapa bastante centrista.

Kamala Harris realmente conversa com o eleitorado negro e/ou feminino dos Estados Unidos?

O partido democrata tradicionalmente recebe uma quantidade muito grande de votos das minorias étnicas e raciais nos Estados Unidos, em torno de 1/3 do eleitorado, onde os democratas costumam ter, por exemplo, mais de 90% do voto negro. Só que, na última eleição presidencial, em 2016, houve uma desmobilização muito grande desses eleitores. A taxa de comparecimento eleitoral foi baixa em vários estados. Em grande medida porque é um eleitor que não se sentiu motivado por Hillary Clinton, que era mais Bernie Sanders, e que se sentiu abandonado pelo partido democrata. O desafio dos democratas em 2020 é mobilizar esse eleitor. Mesmo que ele ache que a chapa Biden/Harris não é muito progressista, que está aquém do que gostaria, ele não tem muita opção. O desafio é fazer esse eleitor sair de casa para votar, o que nos Estados Unidos não é uma coisa tão óbvia. O voto é facultativo, o dia da eleição não é feriado, muitas vezes há problemas logísticos, filas longas.... O desafio dessa campanha será convencer o eleitor que essa chapa fala sério no sentido de ouvir suas preocupações, considerar realmente opções políticas para combater a violência policial e o racismo. A questão das mortes na pandemia atingiu de maneira desproporcional negros e latino-americanos, então é  uma questão de saúde pública. Os Estados Unidos estão à flor da pele. A pandemia expôs uma série de problemas estruturais da sociedade norte-americana, desde o acesso à saúde pública até as questões ligadas à violência policial. Vai ser uma eleição muito mobilizadora, talvez a maior em várias décadas.

Os norte-americanos estão preparados para uma mulher negra na Casa Branca?

Uma das características que distinguem os Estados Unidos de outras democracias em países ricos é que, até agora, ainda não foi governado por uma mulher. Mas já tivemos várias outras mulheres em posições de poder e influência, inclusive mulheres negras. Como secretária de Estado, no Conselho de Segurança Nacional, ou nas prefeituras. Interessante é pensar que se Biden for eleito presidente, será um chefe de Estado idoso, terá mais de 80 anos quando cumprir o mandato inteiro, então a importância de quem vai ser a vice-presidente aumenta, porque, de fato, há uma possibilidade estatística considerável de que ele venha a ter problemas de saúde, que ele precise de licenças médicas, ou que não possa viajar. E ocupar o cargo da vice-presidência, tradicionalmente nos Estados Unidos é um trampolim eleitoral muito importante. Vários vice-presidentes acabaram posteriormente assumindo o cargo principal. O próprio Joe Biden foi vice do Obama durante oito anos. Preparar Harris para uma futura presidência democrata vem de encontro ao desejo de renovação política nos Estados Unidos. É algo muito considerável olhando os desdobramentos futuros. De certa forma, dialoga com essa vontade de renovação que o público norte-americano tem, e que foi expressa com muita forma nas  últimas eleições, tanto a eleição do Obama em 2008, como a própria eleição do Trump, um verdadeiro outsider, em 2016.

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