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'Adrenalina sobe': eles contam como é viver meses a bordo de cruzeiro

Naim Ayub, de 60 anos - Camila Corsini e Divulgação
Naim Ayub, de 60 anos Imagem: Camila Corsini e Divulgação
do UOL

De Nossa*

19/05/2024 04h00

Trabalhar em um cruzeiro tem seus pontos positivos: estar em contato com diferentes culturas, aprender novas línguas, conhecer outras cidades e países.

No entanto, até mesmo quem ocupa os cargos mais altos de um navio precisa fazer renúncias: a tripulação pode ficar até sete meses embarcada, a depender da posição que ocupa. A própria percepção do tempo passa a ser diferente.

Para cada um dos 1.250 tripulantes que trabalham a bordo do Costa Diadema, da Costa Cruzeiros, nesta temporada, o que os motiva estar ali é diferente — que vão de um sonho de infância até o desejo de impulsionar a própria empresa fora do navio.

Brasileiro no comando

Responsável pela diversão do navio italiano. É o brasileiro Naim José Ayub, de 60 anos, que define as festas, faz pesquisas com os próprios passageiros e escolhe os artistas que se apresentarão no teatro a bordo — essa missão inclui até mesmo a busca de DJs in loco. "Com 60 anos, comecei a ir em balada para achar DJ", conta ele.

Ele começou a trabalhar porque queria viajar. Naim é formado em educação física e entrou no mundo dos navios por acaso. Ele começou em resorts como animador infantil e, depois, foi chamado para fazer um trabalho a bordo. Em pouco tempo, começou a trabalhar como coordenador de animação e se tornou diretor.

O mundo mudou, imagina que eu fazia cruzeiros para a antiga União Soviética. Ucrânia era União Soviética. Os navios eram pequenos, para 1,2 mil hóspedes. Hoje, chegam a 6,6 mil.
Naim Ayub

Naim ficará sete meses a bordo. Ele embarcou em 12 de novembro e vai desembarcar em 7 de junho, nos Fiordes, na Noruega. "Durante a pandemia, foi a primeira vez que passei o Natal em casa em 33 anos. As minhas lembranças eram de quando eu era criança", pontua ele. Apesar disso, ele mantém contato com os familiares distantes — seus pais já são falecidos.

Família por perto. Ele explica que, em geral, as famílias gostam de acompanhar a rotina do trabalhador do navio. Para alguns tripulantes, é possível levar o parceiro a bordo por um mês durante a temporada. No caso do Naim, quem o acompanha é o marido. "Ele quer ver o mundo diferente," explica. Mas nem tudo são flores. "O tempo que você tem de folga vai embora", pontua.

Amor a bordo. Outros trabalhadores do navio conheceram o parceiro por lá e já têm anos de relacionamento. Juntos, eles cultivam sonhos que vão desde comprar uma casa ou arcar com uma mudança de país. Se engana quem pensa que, por ir até a Bahia, o cruzeiro tem maioria de funcionários brasileiros: são majoritariamente indianos e filipinos.

Cynthia e José, viciados em cruzeiros, dançam no Costa Diadema - Camila Corsini/UOL - Camila Corsini/UOL
Cynthia e José, viciados em cruzeiros, dançam no Costa Diadema
Imagem: Camila Corsini/UOL

Público brasileiro é diferenciado. Naim destaca que o Brasil é um dos poucos lugares em que o destino do cruzeiro não é exatamente as cidades dos portos em que atraca, mas o próprio navio. "As pessoas trazem fantasias, querem se preparar para as festas. No imaginário delas, elas querem ter esses momentos que só veem em filme de Hollywood." UOL já contou sobre brasileiros viciados em cruzeiros.

Sonho de infância

Sempre quis ser capitão. Antonio Tommaso Tateo, de 62 anos, queria ser capitão de cruzeiros desde que tinha seis anos. Ele cresceu próximo ao porto de Brindisi, na comuna de Puglia, na Itália. "Eu via os barcos de passageiros e ficava fascinado pelas luzes e pelas pessoas que saíam para visitar a cidade", lembra ele.

Trajetória e especialização. Italiano, Tateo estudou no país por cinco anos e, depois, foi submetido a exames para conseguir as licenças necessárias para ser capitão aos 27 anos. Ele começou a carreira com navios de passageiros, ficou um tempo trabalhando com carga, e voltou aos cruzeiros em 2012. Na temporada 23/24, ele é o capitão do Costa Diadema.

Diferença do cruzeiro e navio de carga. "São trabalhos diferentes. Na carga, temos produtos: você coloca, tira, ninguém se move. Pode ser mais desafiador, se carregamos petróleo ou diesel, por exemplo. Mas no barco de passageiros, temos a vida humana. São pessoas que precisam se sentir em casa, ser abastecidas e desconectar do estresse do trabalho."

Quando você acorda na manhã, você não sabe o que pode acontecer durante o dia. Quando você chega em um porto, ainda que você já o conheça, ele pode não ser o mesmo: pode ser afetado pelo vento, pela chuva, pelo tráfego. Coisas inesperadas podem acontecer.
Antonio Tateo

Percepção do tempo é diferente. Outros funcionários que conversaram com a reportagem contam que dificilmente se fala em "ontem, hoje, amanhã" - em geral, a comunicação é se referindo aos destinos. "Tenho mais três dias de Santos até desembarcar", por exemplo.

Trabalho em grupo

Grandes responsabilidades. As funções de um capitão vão além de direcionar a roda do leme: Tateo é responsável pela expedição inteira do navio, bem como organização e segurança de todos que estão a bordo. É um trabalho em grupo: sem outros profissionais, como o prático, uma espécie de "manobrista" do barco, o cruzeiro não consegue sequer sair do porto.

Hoje os navios estão maiores e mais modernos, são como uma nave espacial. Nós temos pilotos automáticos e outros instrumentos eletrônicos, mas sempre funcionam com supervisão de humanos. Em navios de cruzeiro, você pode ter qualquer tecnologia, mas sempre tem que ter alguém checando.
Antonio Tateo

Navio atracado no Porto de Ilhéus - Camila Corsini/UOL - Camila Corsini/UOL
Navio atracado no Porto de Ilhéus
Imagem: Camila Corsini/UOL

Meses a bordo. A vida de capitão não é luxuosa e livre de perrengue - para cumprir suas funções, ele passa boa parte do ano longe da família. "Normalmente, fazemos três meses no navio e três meses em casa. Passamos metade do ano a bordo", explica ele. Mas esse tempo já foi maior, chegando a ficar oito meses do ano em alto mar.

Você precisa ter um espírito aventureiro. A falta de rotina faz a adrenalina subir. Quando termina um contrato, você libera essa adrenalina e vai relaxar em casa, passar um tempo com a família, com os filhos, praticar hobbies. Nós organizamos nossa vida para estar na terra.
Antonio Tateo

Vida longe da família

Horas de folga são importantes. Assim como quem trabalha em terra, os momentos de lazer são muito valorizados pela tripulação. "Saímos para andar e conhecer as cidades, precisamos saber onde levamos as pessoas. Tomamos sol, ouvimos músicas, lemos. Você precisa se manter atualizado", completa Alexandre Marossa, de 60 anos, gerente de hotelaria do navio da Costa.

Família de capitães. Desde pequeno, observando familiares, ele foi definindo que sua profissão também estaria em alto mar. E o ofício segue sendo passado de geração em geração. "Eu venho de uma família onde meu pai, meu avô e meu irmão eram capitães. E, agora, meu filho começou como capitão e está fazendo sua carreira", contou Marossa.

Toda vez que eu coloco meus pés no navio, eu ainda sinto a esperança e a energia para fazer o trabalho que eu gosto. Enquanto eu ainda tiver esse sentimento, eu ainda posso embarcar. Isso é algo que vem de dentro, não é apenas capacidade técnica.
Alessandro Marossa

Marossa é responsável pela logística e cuidado que envolvem passageiros. É a equipe dele, por exemplo, que cuida de toda a comida. A cozinha não para: são cerca de 25 mil pratos preparados por dia, e parte dos insumos chegam da Itália através de containers a cada duas semanas. O queijo muçarela e toda a parte de panificação é produzida dentro do navio.

A produção dos pães é feita no próprio navio - Camila Corsini/UOL - Camila Corsini/UOL
A produção dos pães é feita no próprio navio
Imagem: Camila Corsini/UOL

Vida longe da família. Para Marossa, estar longe da esposa e do filho é a parte mais complicada, mesmo com a possibilidade de comunicação por videoconferência enquanto está embarcado. Todo o tempo em que está em terra firme ele dedica, principalmente, ao filho. Assim como Tateo, ele chega a ficar quatro meses direto a bordo.

Quando meu filho nasceu, eles perguntavam o que eu fazia quando estava em casa. Eu falava que era como uma babá: cuidava dele, levava-o para a escola, para o trabalho. Quando chego em casa, estou o tempo inteiro com ele.
Alessandro Marossa

Segredos de um relacionamento a distância. Por mais que tente estar presente nas decisões da família fora do navio, a palavra final é da esposa, com quem está junto há 24 anos. "Se temos que reformar a casa, eu não digo o que eu quero. Ela é a pessoa realmente envolvida com as coisas. No final, eu digo: 'se é ok para você, é ok para mim'."

É uma brincadeira para os nossos amigos. No começo, eles nos perguntam: 'como vocês conseguem lidar com tanta distância? Eu digo: 'talvez seja por isso que estamos tantos juntos, nós não nos conhecemos todos os dias'. Cada vez que você volta para casa, é algo novo.
Alessandro Marossa

*A repórter viajou a convite da Costa Cruzeiros

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