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Número de desalojados no RS é 82% de todos os deslocamentos do país em 2023

Vista aérea de Roca Sales, no Rio Grande do Sul, tirada em 15 de maio de 2024, após enchentes devastadoras que devastaram a região - Nelson Almeida/AFP
Vista aérea de Roca Sales, no Rio Grande do Sul, tirada em 15 de maio de 2024, após enchentes devastadoras que devastaram a região Imagem: Nelson Almeida/AFP
do UOL

Antoniele Luciano

Colaboração para Ecoa

18/05/2024 04h00

Superior à população de oito capitais brasileiras, o número de pessoas fora de casa após os temporais no Rio Grande do Sul - 615 mil, segundo a Defesa Civil - já atinge 82% do total de deslocamentos internos provocados por desastres climáticos no Brasil no ano de 2023 inteiro. De acordo com um levantamento do IDMC (Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno), em 2023 o país contabilizou 745 mil deslocamentos forçados em decorrência de desastres, o número mais alto desde 2008, quando os registros começaram.

O Brasil também ocupa o 1º lugar no ranking de deslocamentos internos na América Latina relacionados a questões ambientais, como inundações, secas e tempestades. Atrás aparecem Colômbia, com 351 mil movimentações; Peru, com 188 mil deslocamentos; e Chile, com 44 mil situações.

Em toda a América Latina, foram 2,8 milhões de casos no mesmo período, enquanto 26,4 milhões em territórios de 148 países durante todo o ano de 2023. Um terço disso ocorreu na China e Turquia como resultado de fenômenos meteorológicos e terremotos.

O relatório do IDMC aponta que, na América Latina, a situação está relacionada aos impactos da transição do fenômeno La Niña para o El Niño. Chuvas mais fortes foram observadas nas áreas próximas da linha do equador, devido à La Niña. O início do El Niño, por sua vez, desencadeou condições mais secas no segundo semestre do ano, enquanto as chuvas seguiram para o Sul, em direção à Argentina, Chile e Uruguai.

O que aconteceu em 2023

No Brasil, os estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul tiveram de lidar com 183 mil deslocamentos nos meses de outubro e novembro de 2023, devido a chuvas recordes nesse período. No Rio Grande do Sul, na região de Cachoeira do Sul, o rio Jacuí atingiu a terceira maior cheia da história. As inundações danificaram a infraestrutura de municípios, levando prefeituras a declararem estado de emergência.

No Norte do país, o El Niño levou condições mais secas para o Amazonas, que experimentou em setembro a sua pior seca em cem anos. A situação deixou o rio Amazonas com um dos níveis mais baixos que se tem registro. Por conta da seca, 32 mil pessoas tiveram de se deslocar. No primeiro trimestre, contudo, a região já tinha sofrido por conta da La Niña. O fenômeno desencadeou a ocorrência de chuvas intensas no norte dos estados do Acre, Amazonas e Pará, bem como no nordeste do Maranhão. Isso provocou a movimentação forçada de 116 mil brasileiros.

A distribuição dessa movimentação em função de desastres em 2023 mostra que as enchentes no Sul não são os únicos eventos climáticos a colocar autoridades em alerta no país. "Todos somos refugiados climáticos em potencial", afirma o climatologista Alexandre Araújo Costa, professor na Uece (Universidade Estadual do Ceará). Ele argumenta que nenhum lugar está a salvo dos eventos climáticos extremos ligados ao aquecimento global. "Quanto mais elevarmos a temperatura do planeta, maior o risco. Obviamente algumas regiões têm mais risco de seca ou enchente", diz Costa.

Condições para o desastre

No caso do Rio Grande do Sul, há pelo menos dez anos especialistas apontam para regiões com probabilidade de serem atingidas por eventos climáticos extremos. Lançado em 2014, o Primeiro Relatório de Avaliação Nacional das Mudanças Climáticas mostrou tendência para aumento da precipitação na região do Pampa.

O documento previa condições de clima regional de 5% a 10% mais chuvoso e até 1 ºC mais quente até 2040, com intensificação das chuvas entre 15% e 20% nas décadas entre 2041 e 2070. Para o final do século (2071-2100), as projeções são mais graves, com aumento de temperatura de 2,5 ºC a 3 ºC e 35% a 40% de chuvas.

Para o professor Fernando Mainardi Fan, do IPH (Instituto de Pesquisas Hidráulicas) da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), a tragédia gaúcha não tem relação apenas com a sobreposição de fenômenos atmosféricos e volume de água muito acima do esperado para o período, mas também com condições geográficas do estado. "Primeiro, as chuvas entraram pela bacia do Jacuí, que é mais lenta, e depois pela Jacuí e adjacências que são mais rápidas. Então, foram ondas de duas bacias hidrográficas que seguiram em direção ao Guaíba".

A distribuição das bacias hidrográficas no estado associada a questões meteorológicas, falta de planejamento das cidades e tendência das mudanças climáticas leva a um agravamento dos eventos climáticos no Rio Grande do Sul.

"De norte a oeste do estado, toda essa região está contemplada pela bacia do Rio Uruguai e, quando tem um acúmulo de chuvas mais intenso, essa cheia se desloca e tende a ocasionar inundações ao sul. A região mais a oeste também sofre com isso. Mais ao leste, as bacias do Jacuí, Taquari, Caí, Sinos e Gravataí drenam água para o rio Guaíba, que banha Porto Alegre", diz Jorge Barbarotto Júnior, hidrólogo do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais).

Mudanças severas nos biomas

A longo prazo, o alerta para o impacto do aquecimento global nos biomas brasileiros feito por cientistas do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas) também indica a necessidade de ação.

Na Amazônia, há o risco de savanização, processo no qual a floresta rica e úmida entra em colapso e é substituída, lentamente, por uma vegetação que se assemelha à de uma savana, porém com uma diversidade muito reduzida. Nesse ciclo, ao perder vegetação, a floresta produz menos chuva, o que pode afetar não só a região, tornando-a mais seca, mas também a umidade enviada para outras localidades do país e da América do Sul por meio dos chamados "rios voadores".

Estudo publicado recentemente por pesquisadores brasileiros na revista Nature mostra que a floresta Amazônica já está passando por esse processo em áreas periféricas que sofrem com desmatamentos e queimadas. O ponto crítico previsto deve ser atingido em 2050.

Ao mesmo tempo, a Caatinga e o Cerrado também são ameaçados pela desertificação. Nesse caso, os biomas sofrem com aumento de processos erosivos, perda de fertilidade no solo e de biodiversidade, consequências aceleradas pela ação do homem. "É um processo que está em curso, se expandindo ao longo dos anos", reforça Sampaio, do Inpe.

Tempo x Clima

Não há previsões de quando esses processos de colapso acontecerão, mas esses são os cenários esperados no contexto atual de emergência climática global.

O professor Costa, da Uece, salienta que as diferenças entre previsão de tempo e comportamento do clima ajudam a entender essa incógnita. "O tempo tem previsibilidade a pouco prazo, no máximo poucas semanas. O clima, não", explica.

Mesmo assim, Costa alerta para a importância de se atuar para reduzir as emissões de gases do efeito estufa, uma vez que esses efeitos vão chegar, mais cedo ou tarde. "Imagine que talvez essa seja uma analogia: se você pegar uma moeda e lançar para cima, você não sabe se ela será cara ou coroa. Mas, você sabe que se lançar várias vezes aleatoriamente, pode-se garantir que, em um número muito grande de vezes, haverá 50% chances de coroa e 50%, cara. Quando vai dar cada um [cara ou coroa], é virtualmente imprevisível, mas você sabe que vai acontecer", enfatiza.

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