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Ele contraiu HIV aos 10 anos, em transfusão: 'Mas construí família'

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
do UOL

Giovanna Borielo

Colaboração para VivaBem

04/04/2024 04h03

Era o ano de 1985. Adriano Lopes tinha 10 anos e fazia um tratamento para hemofilia A, que recebia transfusões de sangue. Preocupado com as notícias sobre o aumento de casos de HIV naquela época, fez um teste e o resultado deu positivo. Mas, com a evolução no tratamento, conseguiu superar as complicações geradas pelo vírus até se tornar HIV indetectável e constituir uma família. A seguir, Adriano conta sua história:

"Eu tinha dois meses e a hemofilia foi descoberta porque tive algumas manchas roxas nas costas de me pegarem no berço. Não foi uma surpresa para minha mãe porque já havia casos na família.

A minha hemofilia é o tipo A, com deficiência do fator 8 de coagulação, e é grave porque meu organismo produz menos de 1% desse componente. Assim, eu tinha muitas hemorragias nas articulações, tornozelos, joelhos e cotovelos e, por isso, estava praticamente toda semana no hospital, pois os medicamentos só eram aplicados lá ou no banco de sangue.

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Adriano com os irmãos pouco antes de receber o diagnóstico de HIV
Imagem: Arquivo pessoal

Em 1985, aos meus 10 anos, com todas as notícias sobre o HIV e sobre a Aids, a médica da unidade de hemofilia do hospital em que eu me tratava conseguiu importar testes - eles ainda não existiam no Brasil - e decidiu testar alguns pacientes. Eu fui um deles, e o resultado deu positivo.

Com meu resultado, eles chamaram meus pais, mas como não existiam muitas informações, eles recomendaram que eu me alimentasse bem e ficasse em observação. E orientaram que meus pais não lessem os jornais ou assistissem às reportagens a respeito.

Primeiros sinais

Dois anos após meu diagnóstico, apareceram os primeiros sintomas referentes à infecção pelo HIV. Em 1987, com 12 anos, tive uma febre alta e manchas vermelhas pelo corpo. Minha mãe me levou ao hospital, onde os médicos se reuniram para discutir.

A hematologista falou que não teria muito o que pudesse ser feito, já que não existiam medicações para o vírus, mas apenas para as infecções. Até aquele momento, eu não tinha caído em mim sobre a doença.

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Adriano e o filho Marcus
Imagem: Arquivo pessoal

Isso mudou quando fiz 14 anos e passei a ter infecções oportunistas, emagrecer, e fui informado de que estava em estágio de Aids. Ali eu fui desenganado e os médicos chamaram meus pais para avisá-los para se prepararem, pois não teria mais o que ser feito. Eu tive que largar os estudos para me cuidar.

Nesse meio tempo, a morte de Cazuza (em 1990) por conta de complicações da Aids abalou a todos. O cantor foi para os Estados Unidos se tratar e a perda dele nos abalou bastante. Se ele, que tinha acesso aos medicamentos, não resistiu, o que seria de nós que não tínhamos nenhum tipo de terapia?

As idas ao hospital ficavam cada vez mais difíceis, sempre recebia a notícia da morte de alguém, e até mesmo o meu médico - também hemofílico e infectado pelo vírus - faleceu pelas complicações.

A esperança

Em 1992, comecei o tratamento contra a Aids com o AZT (azidotimidina, medicamento antirretroviral) pelo SUS e depois vieram outros remédios, que geravam diversos efeitos colaterais.

Além desses, eram necessários fármacos para profilaxia, para prevenção de infecções oportunistas, antibióticos, remédios para aliviar os efeitos colaterais e inalações. Por essa quantidade de medicações que o tratamento ficou conhecido como coquetel.

Tive infecção no pulmão, úlceras na boca e ferimentos. Em 1994, tive a maior complicação pelo HIV, uma neurotoxoplasmose que afetou meu olho, e foi a mais grave das infecções oportunistas, me deixando internado durante um mês. Felizmente não tive sequelas importantes.

Em meados de 1996 apareceu uma nova geração de medicamentos. Por estar muito debilitado, meu médico conversou com meus pais, admitindo que essa poderia ser a chance de eu melhorar. Os remédios, que eram de alto custo, ainda não estavam disponíveis no SUS e para pagar o tratamento meus pais chegaram a vender o carro.

A minha família sempre me apoiou, tanto na questão da hemofilia, quanto com o HIV. Não fui isolado e nunca houve preconceito. Eles sempre se informaram muito.

Família e o vírus indetectável

Em 2006 fui a um encontro com pessoas que viviam com HIV. Lá estavam também pessoas que não viviam com HIV e conheci a Lucrecia, minha esposa. Logo, começamos a namorar.

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Adriano e a esposa Lucrécia, quando começaram a namorar
Imagem: Arquivo pessoal

Naquela época, eu ainda estava em estágio de Aids e ela ficou com bastante medo por já ter perdido familiares para a doença. Mesmo assim, continuamos o relacionamento.

As idas ao médico continuaram o meu estado era uma incógnita para mim e para os especialistas, pois conheci muitas pessoas que, como eu, contraíram o HIV e dos que desenvolveram Aids, todos morreram.

Em 2010, após 20 anos em estágio de Aids, pela primeira vez meu exame apontou que o HIV estava indetectável. Assim, significava que o vírus não era mais transmissível pela via sexual e nem evoluiria para Aids.

Seis meses após o resultado, eu e minha esposa tiramos os métodos contraceptivos e começamos a tentar ter um filho, mas não conseguimos. Em 2012, Lucrecia teve o diagnóstico de lúpus e decidimos parar as tentativas de um filho biológico para evitar riscos.

Adoção

Partimos então para a adoção em 2013. Depois de todos os procedimentos, tivemos o pedido negado. Pelos nossos problemas de saúde, entenderam que poderíamos morrer a qualquer momento deixando a criança desamparada, mesmo com declarações médicas do HIV indetectável e de que o lúpus de minha esposa estava controlado.

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Adriano e a esposa quando adotaram o filho Marcus
Imagem: Arquivo pessoal

Decidi recorrer da decisão. Dois anos depois solicitaram que enviássemos nosso cadastro para a adoção, pois estávamos habilitados e ganhamos o recurso. Um tempo depois, entraram em contato conosco contando que havia aparecido uma criança de um ano e quatro meses, que tinha um problema cardíaco. Era o Marcus.

Ele tinha uma cardiopatia congênita grave, e já havia sido operado duas vezes. Nós nos apaixonamos por ele e, em janeiro de 2016, o adotamos. Ele passou por um novo procedimento e cuidamos dele, levamos nas consultas, e fazemos todos os procedimentos necessários.

HIV - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Hoje, eu não preciso de mais nenhum cuidado especial em relação ao HIV e ao convívio familiar. É uma vida normal. Eu me alimento bem, me exercito e cuido do meu filho. Tomo minha medicação todos os dias e vou a consultas a cada quatro meses. Não há nenhum risco para nenhum deles.

Há dois anos, estou nas redes sociais levando informações, acolhendo pessoas, falando sobre prevenção, combate ao preconceito e tento auxiliar as pessoas que recebem o diagnóstico do HIV. Apesar de ser uma notícia difícil, por conta do preconceito e do estigma, hoje é possível ter uma vida normal com o vírus. O HIV não impede mais uma pessoa de trabalhar, se exercitar, ter filhos, se relacionar. O que impede é o preconceito."

Você pode acompanhar as postagens do Adriano acessando o seu perfil no Instagram.

Nove dúvidas sobre o HIV e a hemofilia

1- Qual a estimativa de pessoas que tenham contraído HIV durante tratamento de hemofilia?
No Brasil, estimativas do Ministério da Saúde em 2021 mostravam que a prevalência de infecção pelo HIV entre pessoas com hemofilia era de 1%, ou seja, aproximadamente 130 pacientes (para um total de 13.000 pessoas que viviam com hemofilia).

2 - Por que muitas pessoas contraíram o HIV durante o tratamento para a hemofilia? O que mudou?
A hemofilia é uma doença genética-hereditária caracterizada pela deficiência em quantidade ou qualidade de fatores de coagulação sanguínea, cujo tratamento se baseia na reposição desses fatores.

Antes da existência de testes precisos para diagnóstico, doadores que estavam infectados pelo HIV não eram identificados. Em consequência, grandes volumes de sangue doado eram infectados pelo HIV.

Somente a partir de 1985 foram implementadas as técnicas de inativação viral nos produtos derivados do plasma humano. Atualmente, as unidades de plasma são submetidas a testagem com técnicas de biologia molecular, extremamente sensíveis, e todos os produtos derivados passam por rigorosos processos industriais de inativação viral, o que eliminou o risco de transmissão.

3 - Quais os tipos de tratamento para hemofilia?
Nos últimos anos, a segurança das transfusões de sangue e o tratamento da hemofilia receberam significativos avanços tecnológicos. Para combater o tipo de transmissão do vírus HIV observado na década de 1980, foram incorporadas tecnologias para inativação viral, que eliminaram o risco de transmissão relacionada aos hemoderivados.

No Brasil, estão disponíveis os concentrados de fator 8 e fator 9, tanto de origem plasmática quanto recombinantes, que são utilizados no SUS.

4 - Como é garantido que o HIV não seja transmitido durante doações de sangue?
Existe toda uma estrutura nacional de bancos de sangue no país, que segue rígidas normas de triagem de doadores, com a realização de triagem de fatores de risco. Cada bolsa de sangue é submetida a um conjunto de testes laboratoriais de alta sensibilidade para detecção de agentes infecciosos.

5- Como o HIV foi descoberto?
O HIV foi descoberto a partir da observação de que algumas pessoas passaram a apresentar um quadro de imunossupressão importante, junto ao surgimento de doenças que aparecem somente quando o indivíduo está nesse estágio, como a pneumocistose e o sarcoma de Kaposi, tipo de câncer que acomete a pele e os órgãos, que dificilmente acometia pessoas saudáveis. Do ponto de vista epidemiológico, notou-se que as pessoas mais acometidas eram os homens homossexuais, o que acarretou preconceito e discriminação.

6 - Por qual razão a mortalidade era alta entre os infectados?
A principal razão da mortalidade não se dava, exatamente, pelo vírus. Uma pessoa que contrai o HIV pode ficar até 10 anos sem apresentar qualquer sintoma relacionado à imunossupressão. É um vírus silencioso.

A mortalidade se dá porque, aos poucos, o vírus vai destruindo o sistema imunológico e, com a diminuição das defesas, as doenças oportunistas começam a aparecer - sendo elas as responsáveis por levar ao óbito. Entre as mais comuns, estão a tuberculose, a pneumocistose e a neurotoxoplasmose.

7 - Quais os tratamentos ofertados no país para HIV?
O Brasil introduziu precocemente a terapia antirretroviral desde a "era da monoterapia" com os medicamentos disponíveis naquela época, que pertencem a uma classe denominada inibidores de transcriptase reversa, como o AZT, ddI e outros medicamentos.

Em 1996 foi desenvolvida a classe dos inibidores de protease, e apresentados na Conferência Internacional de Vancouver. Já em 1997 passaram a ser distribuídos no Brasil. Atualmente, o país disponibiliza seis classes de antirretrovirais, com 19 medicamentos em 36 apresentações farmacêuticas. Desde a época em que se utilizava a monoterapia, novas estratégias de tratamento foram desenvolvidas, conforme o conhecimento científico.

A utilização desses medicamentos promove o controle da replicação viral, evita o desenvolvimento de doenças oportunistas que caracterizam a Aids, reduzem a mortalidade e promovem melhora na qualidade de vida. O grande desafio atualmente é ampliar o acesso ao tratamento e sua manutenção ao longo do tempo.

8- Como é feito o tratamento para o HIV hoje?
O tratamento para o HIV é feito com o famoso "coquetel", utilizando três substâncias. O tratamento de entrada para quem é diagnosticado é com um comprimido de Lamivudina e Tenofovir, e o outro de Dolutegravir. São três drogas divididas em dois comprimidos diários, e quase sem efeitos colaterais.

Além do tratamento medicamentoso, é importante que a pessoa que vive com HIV tenha uma rede de apoio.

9- Como uma pessoa com HIV pode ter o vírus indetectável?
A terapia antirretroviral (Tarv) reduz a carga de vírus HIV no sangue para níveis tão baixos que podem se tornar indetectáveis nos exames de carga viral. Os medicamentos inibem diferentes etapas do ciclo de replicação do HIV. Permanecer no tratamento é importante para evitar a replicação do vírus e atingir carga viral indetectável. Pesquisas demonstraram que alcançar e manter a supressão da carga viral evita o adoecimento da pessoa que vive com HIV e previne sua transmissão sexual para outras pessoas.

Caso a pessoa use irregularmente ou interrompa o tratamento, o vírus pode adquirir resistência e a pessoa fica exposta ao risco de desenvolver doenças oportunistas que caracterizam a aids.

No final de 2023, o Dathi (Departamento de HIV/AIDS, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis/MS) publicou uma Nota Técnica conjunta com a Sociedade Brasileira de Infectologia, informando que se a pessoa estiver com "carga viral do HIV indetectável ou com detecção até 200 cópias/mL representa risco zero de transmissão sexual do HIV".

O controle da doença e a supressão da replicação do HIV também têm impacto favorável no risco de transmissão vertical do HIV, ou seja, da mãe para o filho durante a gestação ou no parto.

Fontes: Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente - SVSA - Ministério da Saúde e Demétrius Montenegro, infectologista e consultor da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), em Pernambuco.

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