Desgaste, golpe e exigências: por que Portugal demorou quase três anos para reconhecer Independência do Brasil
D. Pedro I enfrentou um longo processo para obter o reconhecimento da Independência do Brasil por outras nações. As negociações com Portugal foram particularmente difíceis, por causa das dificuldades internas enfrentadas pelo príncipe regente, que não cessaram com o histórico Grito do Ipiranga. Em Portugal, o rei D. João VI resistiu por muito tempo a aceitar a perda de sua maior e mais rica colônia.
Em entrevista à RFI, a professora Neuma Brilhante, historiadora do Departamento de História da Universidade de Brasília, uma das autoras do livro "Várias faces da Independência do Brasil", organizado pelos professores Bruno Leal e José Inaldo Chaves (editora Contexto), analisa esse conturbado período da história política brasileira.
RFI - Num primeiro momento, D. Pedro I teve de apaziguar as províncias que ainda se mantinham fiéis a Portugal. Esse período durou muito tempo?
Neuma Brilhante - É interessante se apontar isso, porque durante muito tempo houve uma interpretação como se o Grito de Independência tivesse resolvido todos os conflitos e a questão tivesse sido fechada ali. Na verdade, não. As tensões vinham de muito antes. A ideia da separação chega devido a um desgaste das relações entre o Reino de Portugal e o Reino do Brasil, que estava vivendo sua experiência constitucionalista. É um processo que começa muito antes, alguns meses antes de 7 de setembro, e vai ter continuidade muito depois, até que a solução pela Independência, e este modelo de Independência que foi vitorioso, se consolidasse.
RFI - Houve resistência interna?
No primeiro momento, a gente tem um movimento que é uma declaração de Independência em relação a Portugal. Em outro momento, vai ter um esforço de D. Pedro I e seus principais aliados para garantir a unidade nacional. Aí, temos um momento de guerra. Durante muito tempo, a historiografia evitou usar essa palavra, mas hoje a gente tem usado com mais conforto, que é uma guerra de Independência, em que algumas províncias do Brasil se negam a participar da proposta conduzida por D. Pedro - lugares como algumas partes da Bahia, Pará, Maranhão, Piauí e a Cisplatina. No caso da Cisplatina, a permanência do conflito resulta na separação do Brasil e na criação do Uruguai. Essa primeira onda de conflitos bélicos termina em meados de 1823.
RFI - Durante esse período, como se comportou a corte em Lisboa?
Ao longo de 1822, D. Pedro tem uma postura muito cautelosa, ainda como príncipe regente. Se buscava uma solução que seria de uma Independência, mas não entendida como separação. Manteriam-se os vínculos com Portugal, principalmente na ideia da coroa portuguesa, mas se demandava alguma autonomia administrativa e uma certa autonomia legal. Alguns grupos defendiam, por exemplo, que fosse constituída uma Constituição brasileira, que teria como base a portuguesa, e serviria para todo o Império, mas haveria também uma Constituição para resolver as questões brasileiras.
Antes de haver a separação formal entre Brasil e Portugal, D. Pedro convoca uma Assembleia Constituinte e vai ser nesse momento que começa a ficar mais clara a ruptura. Em 1823, ainda sob forte influência do papel de José Bonifácio, começam as negociações. Nesse primeiro momento, a ideia era que o Brasil negociasse diretamente com Portugal e com outros países que também estavam nesse processo. Mas Bonifácio tem a concepção de que a negociação tem que ser diretamente entre Portugal e o Brasil, o que não dá muito fruto, porque Portugal se recusa a aceitar a perda do Brasil. Lá, discute-se muito internamente o que fazer: se vai se tentar uma reconquista bélica ou a incorporação de algumas partes do Brasil. E isso se prolonga.
RFI - É nesse momento que os ingleses se aproximam?
Até a entrada dos ingleses, é preciso pensar no contexto interno no Brasil. No final de 1823, D. Pedro fecha a Constituinte. Em 1824, ele outorga uma Constituição que provoca várias contestações internas e se enfraquece. Nessa situação, acontece um grande acontecimento: a Vilafrancada. D. Miguel, que era irmão de D. Pedro, dá um golpe. Ele fecha o Poder Legislativo em Portugal, revoga a Constituição e Portugal volta a ser um regime absolutista. Nesse contexto, há uma esperança de reunificação de Brasil e Portugal. Portugal muda a postura porque quer forçar essa reunificação.
No Brasil, por outro lado, é um momento de instabilidade de D. Pedro. A negociação direta se mostra muito infrutífera. José Bonifácio é afastado do governo. D. Pedro assume a posição de negociador da Independência, e aí é interessante porque quem busca a Inglaterra como intermediário são Portugal e Brasil. Num primeiro momento, a Inglaterra não tinha interesse de entrar como intermediador.
RFI - É no esgotamento da tentativa de diálogo direto que surge a mediação inglesa?
Exatamente. A Inglaterra entra, primeiro, como alguém que vai acompanhar. Depois, no finalzinho de 1824, entra como intermediador, após ter fechado o processo de reconhecimento das colônias espanholas.
RFI - É nesse meio-tempo também que os Estados Unidos reconhecem a Independência do Brasil, em 1824?
Os Estados Unidos são o primeiro país ocidental, de configuração moderna, a reconhecer a Independência do Brasil, em uma negociação direta e sem pré-condições. Há uma tentativa do Brasil de tentar o reconhecimento junto à Inglaterra, também em negociação direta. Mas tem como resposta que isso só iria acontecer depois de fechadas as negociações com Portugal. E também na América em geral.
RFI - É nesse momento que surgem personagens-chave, a partir de 1824?
Uma virada de chave, digamos assim, vai ser entrada do diplomata britânico Charles Stuart como negociador. Ele é apontado como representante de Portugal, com amplos poderes. Ele terá uma posição mais assertiva e define os termos das negociações. Havia tensão em três pontos principais, que vão tornar difíceis esse processo.
Primeiro havia uma ideia do pagamento das dívidas que Portugal teria contraído no momento da guerra com o Brasil. Eles exigem que o Brasil pague parcialmente esta dívida. Portugal estava muito endividado, então essa exigência era também uma necessidade imediata diante da perda de sua principal colônia.
RFI - No Brasil, qual foi a repercussão de ter aparecido essa questão da indenização?
Isso vai causar muito mal-estar. D. Pedro fecha a Assembleia Constituinte no final de 1823, mas promete uma Constituição e a reabertura do Poder Legislativo. Isso é feito em 1826. O tratado de Portugal foi assinado em 1825, e o da Inglaterra também. Em 1826, é reaberta a Assembleia Geral, já no formato de Câmara dos Deputados e Senado.
Em 1827, esses tratados são levados para serem discutidos dentro da Câmara dos Deputados e é o primeiro conflito que a gente tem entre os deputados e o imperador. Os deputados acham que o imperador fez vários equívocos. Há um enfraquecimento e um desgaste muito grande das relações institucionais de D. Pedro. Tanto que em 1831, nove anos depois da proclamação da Independência, D. Pedro renuncia, abdica e volta para Portugal para tentar garantir a coroa para sua filha.
RFI - Portugal reconheceu a Independência do Brasil no Tratado de Paz e Aliança, assinado em 29 de agosto de 1825, mas não ficou nada satisfeito.
No momento em que você assina um tratado de reconhecimento, você está dizendo que não reivindicará mais qualquer direito sobre aquele território. Então, isso é uma perda gigantesca para Portugal. Agora, se você for olhar os termos do tratado, tinha três pontos principais. A questão do pagamento da dívida era uma delas. A segunda era que D. João VI exigia, digamos assim, ficar como se tivesse sido coroado, como se recebesse o título de imperador do Brasil. Ele ficou finalmente como imperador emérito, como se tivesse passado o Império para D. Pedro I.
Dentro da Assembleia Constituinte, isso vai ser visto como uma coisa horrorosa. Como assim? Houve uma guerra, pessoas morreram em nome da Independência. Nós agora vamos entender a Independência como uma concessão de D. João VI, e não como uma conquista nacional, do povo? Isso causa um mal-estar enorme dentro do Brasil. E D. Pedro vai pagar o preço político disso.
RFI - Foi uma tentativa de vingança de D. João VI?
Há uma controvérsia se isso teria ocorrido por uma questão de vaidade de D. João VI ou algo mais. Uma interpretação é que seria uma forma de esvaziar o caráter revolucionário da Independência. Havia muito medo de que esse espírito revolucionário se fortalecesse dentro do Brasil, principalmente porque havia uma enorme sociedade de pessoas escravizadas. Havia uma ideia de que, se houvesse conflitos no Brasil e eles se radicalizassem, poderia ter uma revolução muito radical no Brasil.
Quando se faz esse jogo simbólico, esvazia-se o caráter revolucionário da Independência. A Independência não é uma conquista nacional, do povo, mas uma concessão do Imperador. Mas pessoas morreram em nome dessa Independência, como assim uma concessão do Imperador?
RFI - Dois milhões de libras esterlinas foram pagos de indenização para Portugal. Durante quanto tempo isto pesou para o Brasil?
Pesou por muito tempo porque D. João VI já tinha esvaziado as reservas do Brasil quando voltou para Portugal. Depois, houve os gastos da guerra interna, o processo de conflitos do período regencial. Tudo isso demandou muito dinheiro. Durante muito tempo, o Brasil passou afogado por causa dessa dívida.