São Paulo terá estátua de escravizado que comprou liberdade como arquiteto
Abrigo de monumentos que homenageiam bandeirantes e colonizadores, a cidade de São Paulo fará diferente em 2020. No próximo dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, a capital paulista ganhará a estátua do arquiteto e ex-escravo Joaquim Pinto de Oliveira. O monumento ainda não está pronto, mas os artistas mostraram um esboço a pedido do UOL.
De coautoria da arquiteta Francine Moura, 43, a obra é assinada pelo artista plástico mineiro Lumumba Afroindígena, 40, que já trabalhou em projetos na Disney e Dreamworks. Para ele, a escultura é um marco histórico.
Os dois afirmam que a intenção é homenagear uma figura importante e que sofreu apagamento ao longo da história.
O monumento foi custeado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, que pagou cerca de R$ 171 mil. Segundo a pasta, a obra faz parte de um pacote de ações antirracistas que teve início em julho, com o projeto Vozes Contra o Racismo.
"Este monumento simboliza uma nova postura do poder público para com as memórias apagadas na cidade que necessitam atenção e reconhecimento", afirmou a Secretaria Municipal de Cultura ao UOL.
A peça será inaugurada oficialmente durante a sexta edição da Jornada do Patrimônio, no dia 5 de dezembro.
A estátua é feita de aço inox, ferro e concreto aparente na base. Ficará na Praça Clóvis Bevilácqua, próxima à Praça da Sé, entre as igrejas da Sé e do Carmo. Os dois templos tiveram intervenções do arquiteto. Foi trabalhando nelas que o arquiteto conseguiu, aos 57 anos, juntar dinheiro suficiente para pagar por sua alforria.
'Alguém de grande habilidade'
O homenageado viveu entre 1721 e 1811 e era conhecido como Tebas, que significa "alguém de grande habilidade" em quimbundo, língua do noroeste de Angola.
Trazido de Santos pelo português Bento de Oliveira Lima, ele logo se tornou conhecido —e disputado— pelos templos católicos que queriam dar às suas fachadas um ar mais requintado.
Em 2018, o Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo reconheceu Tebas como arquiteto.
Tebas trabalhou, por exemplo, na restauração do Mosteiro de São Bento entre 1766 e 1798 e tem como uma de suas obras mais importantes o Chafariz da Misericórdia, o primeiro da cidade.
Construído em 1792, ficava onde hoje é o cruzamento das ruas Quintino Bocaiúva, Direita e Álvares Penteado. Pouco menos de cem depois, foi levado para o largo de Santa Cecília e posteriormente foi recolhido pela Prefeitura.
Homenagem retrata história do escravizado
Os desenhos da nova estátua compartilhados com a reportagem já evoluíram, afirmam os artistas.
Para os criadores da obra, os conceitos embutidos na escultura do arquiteto paulista procuram retratar sua condição de escravizado, sua liberdade posterior, seu sucesso profissional e o apagamento histórico que sofreu.
[A ideia principal é] afastar, de uma vez por todas, a aura de invisibilidade que repousava sobre a história de Tebas"
Rita Teles, produtora executiva e artística
Trabalhando com Lumumba, ela destaca ainda que a estátua pode remeter a super-heróis ou a alguém que possa ser referência para crianças negras que passam pelo local.
Lumumba e Francine se dizem otimistas sobre a possibilidade de ver outras estátuas de personalidades negras espalhadas pela cidade.
Se for para acontecer, que aconteça, que não seja algo passageiro. Temos uma grande responsabilidade agora de não deixar que isso seja uma onda"
Lumumba, artista plástico
Impulsionados por atos antirracistas e outras iniciativas em defesa dos direitos humanos e equidade racial, estátuas ligadas ao período de colonização e a figuras tidas como racistas têm sido alvo de questionamento. A deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL), por exemplo, propôs projeto de lei para remover estátuas de escravocratas de São Paulo.
Movimento semelhante ocorreu fora do país após a morte de George Floyd, quando manifestantes removeram bustos de pessoas associadas à escravidão nos EUA e Reino Unido.
"Eu sou um pouco mais cético sobre a gente ter uma escultura como a do Anhanguera na Paulista sendo derrubada", relativiza o artista plástico.
A equipe que trabalhou no projeto é composta majoritariamente por pessoas pretas, o que segundo Moura fez toda a diferença.
Trabalhar com uma equipe majoritariamente preta traz conforto para mim, que venho de uma trajetória em ambientes corporativos, em que você olha para o lado e não se vê"
Francine Moura, arquiteta