Os poderes curativos de uma jornada mística pela Irlanda
Quando uma jovem cineasta morre, 24 amigos e familiares viajam para as Falésias de Moher para realizar seu desejo.
Assisti trêmula quando meu noivo, Alan, firmou sua câmera na beira do abismo das Falésias de Moher, de frente para as águas turbulentas da Irlanda.
Por conta da chuva e das rajadas de vento, a única coisa que pensava era "por favor, não caia". Ali, 24 amigos testemunharam Gary cumprir o desejo final de sua amada: espalhar suas cinzas no mar.
Do penhasco, a vista era impressionante. Quando olhei para um lado, uma luz dourada surgiu do céu.
Na direção oposta, uma cortina cinzenta se impôs. Logo a chuva atingiu nossos ombros, seguida por um arco-íris. Phillip, um artista local, levantou o queixo. "A beleza deste clima é a sua mutabilidade".
"Assim como a tristeza", acrescentei. Nos meus 37 anos de vida, fui golpeada pelo terror e pela grandiosidade do luto. Mas esta viagem à Irlanda não foi sobre mim.
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Seu nome era Allison Wilke, mas ela usava Allison W. Gryphon, inspirada na criatura mitológica que simboliza coragem e força. Eu só me encontrei com Allison uma vez.
Naquela tarde luminosa de Los Angeles em 2015, ela visitou meu apartamento com Alan para discutir um projeto de filme. Eles colaboraram durante anos e, no momento em que ela faleceu, ela estava trabalhando como produtora no programa da Netflix The OA.
Após o episódio final da primeira temporada, a tela fica preta e a mensagem "Em Memória de Allison Wilke" aparece.
Quando nos sentamos ao redor da mesa há quatro anos, Allison me disse que ansiava por voltar a Doolin, na Irlanda, onde ficou por seis semanas durante um retiro de escrita, 11 anos antes.
Ela esperava continuar lá seu trabalho em uma série de romances.
Diagnóstico de câncer
O primeiro diagnóstico de câncer de Allison foi em 2011, quando ela tinha 38 anos. Na época, ela e Alan buscavam atores para um projeto que planejavam começar a filmar em breve. Mas mudaram de ideia e resolveram fazer um documentário sobre a luta de Allison contra o câncer.
No filme, você vê Allison na sala de cirurgia, momentos antes de sua mastectomia; e novamente após a cirurgia de reconstrução de mama, quando um tatuador gravou asas triunfantes nela.
Você a vê dirigindo do médico para casa, as janelas abaixadas e sorrindo, no dia em que ela descobre que completou a primeira rodada de tratamento.
Allison lançou o documentário em 2014 e criou uma fundação para ajudar outras pessoas a combater o câncer. Mas apenas dois anos depois, em uma cama de hospital, ela disse a seu parceiro, família e amigos mais próximos que estava morrendo, seguida de "tudo vai ficar bem".
Em seus últimos dias, ela pediu que levassem suas cinzas para Doolin, onde se via em paz.
Dois anos depois de sua morte, aqui estava eu em Doolin, o lugar que ela desejava rever - mas sem ela. Quão cruel parecia.
Senti-me indigna: de estar presente ao lado de pessoas como seu parceiro Gary, com quem ela trocou centenas de bilhetes de amor; seu pai Doug, que a conhecia como uma criança de cabelos claros; ou sua amiga Alia, que lavou sua roupa quando ela não conseguia levantar os braços.
Eu não era Alan, que vasculhou mais de cem horas do documentário de Allison quando ela ainda estava viva, porque ela não suportava fazer isso sozinha.
Na época, Allison tinha acabado de completar seu tratamento de quimioterapia e seu cabelo havia crescido novamente. Ela não estava pronta para reviver as partes mais assustadoras de sua batalha.
Lugar de cura
Nem era Phillip, que gerencia uma galeria de arte em Lahinch, cidade no litoral irlandês, próxima a Doolin; que brincou com sua esposa no dia em que conheceu Allison, 11 anos antes, dizendo que ele convidara uma "loira californiana" para sua casa.
Durante a batalha contra o câncer, Phillip colocou uma foto de Allison saudável em um dos lugares favoritos dela: o místico santuário do Poço de St. Brigid, próximo às falésias, cuja água teria poderes curativos.
Peregrinos costumam deixar fotos e lembranças de entes queridos doentes ou que partiram na caverna úmida. Phillip enviara a Allison uma foto dela entre a tapeçaria de totens - um lembrete de que a Irlanda de Allison estava com ela, enviando energias para que ela se curasse.
Entre os que mais importavam para Allison, eu era apenas uma parte tangencial de sua vida. Mas Alan me disse que precisava que eu viesse.
Como cantora funerária há mais de duas décadas, aprendi a não hesitar quando uma pessoa em luto solicita sua presença. Através da dor da perda, se alguém pode pensar em algo - qualquer coisa - que possa ajudá-los a refazer a vida, isso é um dom.
Depois da morte de Allison, dois de seus amigos encontraram filmagens dela conversando com a câmera. Algumas eram fragmentos de um diário em vídeo da época de Allison na Irlanda, outras de sua batalha contra o câncer que não foram usadas no documentário.
O plano era que os 24 amigos e familiares mais próximos de Allison se filmassem sempre que se sentissem inspirados e gravassem entrevistas para um novo filme sobre o luto.
Assim como Allison aproveitou a câmera para transformar seu sofrimento em arte, nós também. Quando desembarcamos no aeroporto de Dublin, Alan me entregou sua câmera.
Histórias de Allison
A jornada foi tão intensa para aquelas pessoas quanto tinha sido para Allison. Era um movimento de cura, para lembrar-se dela alegremente e sorrir novamente, como Allison desejaria.
Durante nossa viagem de uma semana, coletamos pistas das antigas fotos, cenas e histórias de Allison para refazer seus passos.
Durante sua passagem pela Irlanda, Allison escreveu sobre bruxaria e feitiços. Ela visitou trilhas de fadas irlandesas em florestas pontilhadas de casas em miniatura que seriam habitadas por espíritos.
Anos mais tarde, depois que Allison conheceu Gary, ela inventou uma elaborada história de fadas para suas duas filhas pequenas e deixou cartas e pistas para mantê-las encantadas, mesmo depois de sua morte.
Em homenagem a Allison, caminhamos na chuva e na lama para visitar uma trilha de fadas. Descobrimos pequenas casas e minúsculos varais enfeitando os jardins de uma mansão do século 18, o Falls Hotel & Spa.
Nos nossos jantares no Fitz's, ouvi histórias sobre Allison. Os olhos azuis de sua tia Alice se encheram de lágrimas quando ela me contou que Allison colocava os outros em primeiro lugar, mesmo quando estava doente.
Seu pai de 86 anos falou com seu sotaque de Long Island sobre seus verões navegando juntos. Com cada memória compartilhada por aqueles que a amavam, tornei-me uma testemunha, uma guardiã de partes da vida de Allison, e prometi não esquecê-las.
Sinais mágicos
No Dicionário de Cambridge, uma definição do verbo "testemunhar" é um comando: "Seja a pessoa que vê". Aqui estava eu, vivendo, respirando evidências de que alguém que eu mal conhecia tinha amado.
No momento em que Gary me pediu para acompanhá-lo no bar do Hotel Doolin, onde ele filmaria sua entrevista sobre Allison, meu sentimento de indignidade havia desaparecido.
Ele me convocou como sua testemunha. Senti uma pontada de honra semelhante a quando um pai me pediu para cantar Danny Boy no funeral de seu filho, me confiando sua dor; e quando uma professora do ensino médio pediu para eu ensaiar um hino com ela - uma música que eu cantaria em seu funeral meses depois.
Perguntei a Gary por que ele queria minha presença se ele podia ter escolhido alguém que os conhecesse melhor. Ele me disse que eu entendia o processo de luto e a magia que Allison trouxe - e ainda traz - para ele.
Mais cedo naquela semana, Gary confidenciou que acreditava que Allison o havia visitado por meio de sinais, alguns tão fascinantes quanto os de quando ele se deparou com uma "porta de fada". Talvez ele tenha detectado que, como Allison, eu estava aberta à magia e acreditaria nele.
Alan fixou a câmera em um tripé na frente de Gary. Eu sentei em um banco ao lado.
Quando Gary falou sobre como era se sentar ao lado da mulher que ele amava, Alan olhou para mim. Ele sabia que meu maior medo era perdê-lo.
E, no entanto, senti que algo me dizia que este não era o fim para Allison, que não há fim para nenhum de nós, desde que haja testemunhas.
Na última noite, enquanto comia bacalhau frito e pão integral no Fitz's, a amiga mais próxima de Allison, Mary Beth, pediu que eu ficasse em sua linha de visão durante a entrevista.
Trabalhei no cinema e na televisão e costumava me posicionar no final do olhar de outra pessoa. Mas não de alguém sofrendo.
Mary Beth me tranquilizou. Ela disse que era natural para ela que eu, uma força calorosa, fosse seu ponto de foco enquanto ela enfrentava a dor.
A câmera começou a gravar, e Mary Beth me disse que quando as coisas pareciam insuportáveis, quando a vida ficava "louca", como Allison a chamava, ela a encorajava a "transformar uma situação negativa em borboletas".
E então, um dia, para surpresa de Mary Beth, Allison disse: "Você fez isso. Você está se tornando uma borboleta".
Os 24 integrantes da jornada se aproximaram quando Gary espalhou as cinzas de Allison nas Falésias de Moher. Colocamos nossos braços ao redor um do outro, muitos de nós estranhos até aquela viagem.
Esse vácuo cavernoso que chamamos de luto pode ser escuro e pesado o suficiente para nos esmagar. Mas quando há testemunhas - pessoas que nos vêem - ele pode ser leve e iluminado.
Quando vi Gary ajoelhar-se em uma elevação e sacudir a urna em direção ao mar, soube que sua forma mudaria para acomodar a perda dela. Podia detectar sua mutação, ele se transformava em borboleta.
Naquela manhã dissemos adeus - na manhã em que trouxemos Allison para casa - as falésias, o mar, o dia foram todas nossas testemunhas. Tinha me tornado uma pessoa de luto também, um deles. Agora que você ouviu a história de Allison, também é.
Nossas lágrimas caíram como a chuva, mas o céu irlandês, sempre mutante e milagroso, era uma cascata de sol. E nós estávamos todos lá para ver isso.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.
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