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Ficar cega foi a melhor coisa que me aconteceu, diz universitária

Carla (dir.) ao lado da mãe, Nice - Arquivo Pessoal
Carla (dir.) ao lado da mãe, Nice Imagem: Arquivo Pessoal

Diana Carvalho

Do BOL, em São Paulo

25/02/2019 06h00

A estudante Carla Chierosa Antunes, 26, nasceu com glaucoma congênito e perdeu totalmente a visão aos 18 anos de idade. O que vivo hoje em oito anos de cegueira eu não vivi em 18 anos da minha vida inteira. Se eu colocar na balança tudo que já passei, sem dúvida, há muito mais coisas positivas do que negativas."

A mãe de Carla Chierosa Antunes soube do diagnóstico da filha assim que deu à luz. O glaucoma congênito, uma doença rara dos olhos que afeta a criança desde o nascimento, é causado principalmente pela elevação da pressão ocular, que provoca lesões no nervo ótico e pode levar à cegueira. 

"Desde pequena eu já sabia da minha condição. Minha mãe, sempre muito realista, fazia questão de me contar tudo o que estava acontecendo a cada ida ao médico. Aos poucos, e com mais idade, fui entendendo o que era o glaucoma e o que ele poderia causar", relembra a estudante de 26 anos, que nasceu em Santo André (SP) e hoje mora em Itajaí (SC).

Carla, aos 3 anos de idade - Arquivo Pessoal  - Arquivo Pessoal
Carla, aos 3 anos de idade
Imagem: Arquivo Pessoal
Ainda na infância, Carla passou pela primeira cirurgia com o objetivo de controlar a evolução da doença em um dos olhos. Não adiantou. "Minha pressão ocular estava muito alta, e o procedimento não deu certo. Acabei perdendo a visão do olho esquerdo aos 9 anos de idade", relembra.

O episódio marcou a vida de Carla e fez com que ela desse vazão a um dos traços de sua personalidade, que seria decisivo em suas escolhas no futuro. "Precisei ser forte. Ter perdido parte da minha visão deixou minha mãe muito abalada. Ela, que era inquieta, passou a ficar horas na cama. Até que um dia, angustiada por vê-la naquela situação, explodi e disse: 'Se você continuar deitada o tempo todo, eu também vou deitar e esperar a morte chegar. Então levanta, porque preciso de você'".
 
Nesse momento, a ligação de mãe e filha passou a ser ainda maior. "Minha mãe entendeu que, se eu não estava tão mal por ter perdido parte da visão, porque ela, que tinha a visão perfeita, ficaria?".
 
O apoio da família fez com que a jovem crescesse cercada de amor e cumplicidade. Na vida social, no entanto, os seus melhores amigos eram os livros e foi com eles que ela percebeu, aos 18 anos, que algo estava errado com sua visão. 

Carla, aos 15 anos, andando de bicicleta em Santo André, na grande São Paulo  - Arquivo Pessoal  - Arquivo Pessoal
Carla, aos 15 anos, andando de bicicleta em Santo André, na Grande São Paulo
Imagem: Arquivo Pessoal

"Me lembro que nesta idade eu não queria saber de baladas, meninos, namoro... Minha vida era ler e jogar RPG. Bem nerd mesmo", revela. "Em 2010, durante as férias do colégio, viajei para a casa da minha avó no interior de SP e levei cinco livros. Desses cinco, só consegui ler dois". Carla estava, novamente, enfrentando os sintomas do glaucoma.
 
Comecei a enxergar tudo embaçado. Como já tinha consulta marcada, preferi não contar nada para ninguém. Já em SP, no consultório, o médico analisou os exames e falou para minha mãe o que eu já sabia: o risco de ficar cega." 

Decisão consciente
"Eu tinha a opção de fazer uma nova cirurgia para baixar a pressão ocular para tentar manter parte da visão, mas não quis", revela Carla, que nesse período se lembrou da primeira cirurgia que realizou aos 9 anos. "Pode, sim, ter ficado um trauma. Mas, mais do que isso, a vida é feita de escolhas. E essa foi a minha."

Carla Chierosa Antunes - Arquivo Pessoal  - Arquivo Pessoal
A primeira cirurgia de Carla foi aos 9 anos de idade
Imagem: Arquivo Pessoal
Na ocasião, a cirurgia poderia trazer um resultado positivo, mas também poderia fazer com que Carla perdesse a visão na mesma hora. Com a segunda opção, a jovem conseguiu ir se adaptando à nova condição: "O meu processo foi gradativo e em dois meses eu estava cega".
 
"Na época, minha mãe ficou muito revoltada, mas aceitou aos poucos. Combinamos que em casa nada seria modificado ou tirado do lugar. Como ela gosta muito de espelho e vasos, pedi para que deixasse tudo igual", conta.

"Minha adaptação foi um dia de cada vez. Lembro que, no começo, meu padrasto precisou pegar algo dentro do guarda-roupa e o deixou aberto. Claro que dei de cara na porta. Por isso criamos regrinhas, do tipo: tirou do lugar, coloca. Abriu, fechou."
 
Passou a "enxergar" de outra forma
Quando descartou a cirurgia, Carla não sabia que a sua primeira viagem para fora do país seria justamente para buscar o que daria um novo sentido à sua vida. Ela foi para os EUA e conheceu Buster, o seu cão guia.

"Fiquei três anos na fila de espera por um cão guia. Quando consegui, a minha primeira caminhada com ele foi emocionante. Comecei a chorar e precisei parar. Era como se estivesse fechando um ciclo e iniciando outro. Naquele momento, voltei a enxergar. De uma forma inocente e íntima, enxergar pelos olhos de um bichinho é uma sensação única, de gratidão. Eles estão ali, do seu lado, sem pedir absolutamente nada em troca."

Carla e seu cão guia, Buster  - Arquivo Pessoal  - Arquivo Pessoal
Carla e seu cão guia, Buster
Imagem: Arquivo Pessoal

Lidando com o preconceito
Com Buster ao lado e com a ajuda de um software de voz - que auxilia deficientes visuais em atividades com leitura -, Carla decidiu cursar Direito. "Foi a primeira vez que senti dificuldade em sala de aula. Comecei a me enrolar com provas e trabalhos, não conseguia lidar direito com o software de voz. Estava totalmente crua", recorda.
 
Além disso, a estudante esbarrava sempre em uma questão: a falta de oportunidades. "Sem estágio e sem trabalho, precisei parar. Não tinha grana para bancar a faculdade". Foi então que, em 2017, quando participou e coordenou o 1º Encontro Nacional de Usuários e Amigos de Cães Guias, em Santa Catarina, Carla agarrou a chance de mudar de área e cursar Jornalismo na cidade de Itajaí, com bolsa integral. 

A estudante ganhou uma bolsa de estudos integral e hoje estuda e mora Itajaí (SC) - Arquivo Pessoal  - Arquivo Pessoal
A estudante ganhou uma bolsa de estudos integral e hoje estuda e mora Itajaí (SC)
Imagem: Arquivo Pessoal
"Fiz amigos por lá e eles me convenceram a prestar o vestibular. Não esperava passar, mas, quando soube do resultado, minha mãe alugou uma kitnet pela internet e, depois de uma semana, eu já estava morando sozinha em Santa Catarina. Na época, estava namorando. Ele morava em Balneário Camboriú, cidade vizinha."
 
Longe dos pais, que moram em São Bernardo, na Grande São Paulo, Carla precisou não só lidar com a solidão, mas também com o preconceito. "A galera da minha sala, na faculdade, era muito esnobe. Ninguém é obrigado a ajudar ninguém, mas eu não conseguia nem ter diálogo com o pessoal", relembra. "Em trabalhos em grupo, por exemplo, eu era a 'café com leite'. Não fazia nada. Ninguém me delegava tarefas. E isso começou a me incomodar".
 
Nesse período, Carla conta que pensou em desistir. "Eu só sabia comer e chorar. Engordei 30 kg. Cheguei a arrumar a mala, mas algo dentro de mim foi mais forte: a teimosia." 
 
A estudante decidiu ficar, trocou de turma e hoje cursa o 3º ano de Jornalismo. "A galera da minha sala, agora, é muito gente fina. Também fiz bastante amizade com professores, conheci mais deficientes visuais e voltei a fazer atletismo."

Carla conta que hoje em dia é muito mais sociável e segura do que antes e que vive de forma intensa. Ficar cega foi a melhor coisa que me aconteceu. Eu cresci muito, fiquei bem mais confiante e aproveito muito mais a vida."

"Não tenho mais parada"
O objetivo de Carla agora é terminar a graduação e voltar para São Paulo. "Santa Catarina, hoje, para mim, é passageiro. Só me oferecem estágio para dar informações, atender telefone, atribuições que geralmente delegam para deficientes visuais. E eu não quero isso, tenho capacidade para atuar na minha área." 

O maior problema das empresas é essa preocupação de querer adaptar todo o local de trabalho. E não é por aí. Você precisa, primeiro, conversar com o deficiente visual e dar liberdade para que ele fale o que consegue e o que não consegue fazer."

Para Carla, mais do que adaptação, é preciso se despir do preconceito e arriscar. "O que impede muitas pessoas é o medo. O medo é a maior limitação do ser humano, não a sua condição ou deficiência. Minha mãe nunca me permitiu desistir. Se desistir, é pra desistir agora, neste momento. Mas no outro dia sempre existia, para nós, o 'e aí, vamos tentar fazer de novo?'. Eu tentei. E consegui."

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