'Após cesárea, vi quanto o parto natural pode ser pressão para mulheres'
"Eu tinha uns 31 anos quando comecei a tentar engravidar. Achava que precisava ser logo porque ia perder bebês, como muitas das minhas amigas. Pensava também que estava começando a ficar velha e depois seria mais difícil. Já morava com meu parceiro havia quatro anos. Depois de parar de tomar a pílula, foi quase um ano tentando, um período cheio de encanações em que não entendia por que algumas amigas tinham tanta facilidade e eu estava demorando tanto.
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Engravidei de Angelina em 2019. Diferentemente das minhas amigas, tive uma gravidez muito tranquila. Nada de enjoos, pressão alta, indisposição. Cheguei até a melhorar a alimentação, me exercitar melhor. Engordei apenas dez quilos. Essa tranquilidade inicial foi me dando confiança de que poderia ter o parto mais natural possível.
Esse desejo já existia antes, quando soube a grande quantidade de cesáreas desnecessárias no Brasil. Mas cresceu depois que engravidei e comecei a ler conteúdos e participar de rodas de conversas com doulas. Tinha decidido ter uma e tentar o parto natural com plantonista no hospital. Hoje sei que o melhor plano seria ter um obstetra de confiança, evitaria muita angústia. Mas entendo também que foi importante guardar a grana que gastaria para isso.
Esse enorme desejo por um parto normal acabou gerando conflitos com meu parceiro, que não se envolvia no tema. Ele achava que era bobeira, que as pessoas só queriam ganhar dinheiro em cima do sonho do parto humanizado. Assim que contratei a doula, já com 32 semanas e me achando total empoderada de informações para ter o parto normal, descobri que minha bebê estava sentada. É o que os médicos chamam de bebê pélvico. Gosto do termo que uma das doulas usava: uma variação da normalidade.
A partir desse ultrassom, minha vida foi tomada por muitas opiniões de todos os tipos. No começo, as pessoas diziam que, se eu pensasse positivo, eu ia conseguir. Essa positividade foi me deixando bem revoltada. Muita coisa na vida, diria a maior parte delas, não tem a ver com pensar positivo. Pensei muito positivo e minha bebê não virou. Entendo que as pessoas usam esse tipo de frase para te acolher e tentar acarinhar.
Passei a ser uma grande pesquisadora desse tipo de condição. Li estudos científicos sobre o tema, relatos de mães, opinião de especialistas. Consumia tudo o que podia de informação. Fiz um curso de spinning baby, por orientação da doula. Fazia vários exercícios malucos para ver se a bebê virava. Lá estava eu, em pleno janeiro, barriga de nove meses de gravidez, andando de quatro pela casa e ficando um tempão de cabeça para baixo deitada numa prancha de passar roupas.
O tempo foi passando, e nada. Cada ultrassom era muita ansiedade. Fiz acupuntura, moxabustão, chás, usei lanternas, muito papo com a criança.
Mas, veja só, eu não estava no controle. Acho que essa foi a lição mais valiosa e difícil de encarar. Nem tudo podia ser controlado por mim. Existia uma outra vida comigo nessa história que tinha outros planos. Comecei a me frustrar muito quando percebi que o sonho do parto normal estava mais longe.
A parte mais difícil começou quando me dei conta que ela não iria virar e eu devia me preparar para isso. Li muito sobre o parto pélvico natural e a manobra que poderia ser feita para desvirar a criança antes do trabalho do parto. Mas avaliei os riscos e optei pela cesárea. Acho também que quase ninguém me apoiaria no parto natural pélvico. Havia decidido que esperaria o início do trabalho de parto para fazer a cesárea, contrariando a opinião do meu ginecologista na época e de muitos dos plantonistas que passei e ter de encarar na reta final. Cheguei à 40ª semana e nada de trabalho de parto.
Ia quase diariamente ao pronto-socorro ver se estava tudo bem. E cada médico tinha uma opinião. Alguns achavam minha decisão de esperar coerente, mas muitos outros passaram a fazer um verdadeiro terrorismo. Ouvi de duas médicas que eu estava colocando minha bebê em risco. Que eu chegaria ao pronto-socorro com a cabeça do bebê entalada na minha vagina. Sai várias vezes chorando do hospital. Essa cena passou a me aterrorizar muito.
Toda vez que saía de casa, me imaginava em trabalho de parto em algum lugar ermo da rua e a bebê entalada. O risco realmente existia. O fato de a cabeça ser a última a sair da vagina poderia comprimir o cordão umbilical e deixar a criança muito tempo sem oxigênio. Mas era bem baixa a probabilidade de eu ter um parto rápido assim, a ponto de chegar ao hospital com a bebê entalada.
O médico que me acompanhava me deixou ainda mais desestabilizada. Disse que eu já havia ido longe demais e precisava admitir que meu corpo havia falhado. Caramba, eu lá gerando uma vida e esse senhor desvalidando meu corpo? Depois de muito choro e desesperança, decidi que estava cansada de ficar vulnerável nessa situação. Esperaria apenas até 40 semanas e cinco dias. Qualquer mulher que chega até 41 precisa passar por indução. Mas não fazia sentido esperar ou induzir, se já havia escolhido a cesárea.
Lembrei da frase de uma das médicas que me atendeu no plantão, quando eu disse que queria que a bebê escolhesse o tempo certo para nascer: 'Mas, e se a bebê tiver escolhido deixar você escolher?' Decidi pelo dia 2 de fevereiro de 2020.
Depois de muito medo e desgaste, tive um parto muito bonito. Um dia antes, fiz uma despedida pra mim mesma. Fui passear em um parque, comi no meu restaurante predileto, tomei sorvete e namorei bastante. No dia, um domingo chuvoso de fevereiro, dei entrada bem cedo no hospital que escolhi por ser referência em cesárea. Fui bem tratada, consegui ficar grudada na bebê assim que ela nasceu e a cirurgia ocorreu sem problemas. Me senti bem nos dias seguintes. Só os pontos às vezes incomodavam. Mas tinha disposição para fazer as atividades que precisava.
A bebê nasceu com displasia de quadril e precisou usar por dois meses um colete especial que reduzia seus movimentos na perna. Foi bem difícil passar por isso, mais do que pela cesárea. E, claro, ficava me questionando por que tinha que ser assim comigo. Acho que a pior sensação é tomar decisões que podem deixar em risco o bebê.
Apesar de ter estudado muito sobre o desafio que estava encarando, era triste abrir mão do que eu tinha sonhado. Parecia que eu estava saindo derrotada. Mas era uma grande bobagem da minha cabeça, porque fazer uma cesárea, ainda mais depois de tantos processos, luta e informação, estava longe de ser uma derrota. Como dizia minha doula: é a cirurgia mais bonita do mundo. É a única que você sai de lá com uma vida nas mãos.
Acabei me cercando dos profissionais errados. Precisava principalmente de um obstetra que me passasse confiança, mas sei que isso custa caro no Brasil. Sofri muito sem esse apoio. Também fiquei muito obcecada por uma parte do processo, que é o nascer. Muita coisa mais importante estava por vir. Olhando para trás, o parto parece só mais um detalhe
A insegurança é um sentimento muito natural nessa fase, e a gente precisa acolhê-la. Nós, mulheres, estamos sempre num processo social perverso de sermos desacreditadas, subjugadas, manipuladas. E isso fica cada vez mais evidente na maternidade.
Meu principal conselho para quem passa por situações inseguras na gestação é se cercar de informação de qualidade e de pessoas em que realmente confia. Acredite no seu potencial: você está gestando uma vida, e isso é divino! Mas tenha consciência de que não é possível estar no controle de tudo. Muitas coisas vão acontecer alheias às suas vontades, estudos, dinheiro, desejos. E vai estar tudo bem."
Vanessa Selicani, jornalista, 37 anos, mãe de Angelina, 4 anos