Muitas vítimas, logo depois de noticiarem violência contra elas ou seus filhos, são acusadas de serem alienadoras --em especial quando os investigados por violência têm poder econômico.
Essa estratégia coloca em segundo plano a violência, e as mulheres vítimas ou protetoras de seus filhos transformam-se em vilãs vingativas que tentam prejudicar o contato do filho com o genitor. É um beco sem saída: se as mães não noticiam a violência são omissas, se noticiam a violência e o filho não repudia o agressor, estão mentindo; se noticiam a violência e o filho repudia o agressor, são alienadoras.
No cotidiano em defesa dos direitos das mulheres, recebemos e atendemos centenas de mães que vivenciaram e ainda vivem esse pesadelo.
O Brasil é o único país do mundo que tem uma lei sobre alienação parental, pois esse pseudoconceito de "síndrome de alienação parental" já foi desmentido internacionalmente e repudiado por associações de médicos, psiquiatras, psicólogos e órgãos internacionais.
A Lei de Alienação parental está baseada na teoria de Richard Gardner, um psiquiatra que foi investigado pela prática de incentivo à pedofilia e se suicidou. Com base em seus estudos clínicos, Richard defendia que no momento do divórcio mães estimulavam seus filhos a mentir a respeito de abusos sexuais e noticiavam violências como forma de evitar o contato com o genitor, mas essas denúncias eram falsas. A rejeição da criança ao pai, para Gardner, era uma forte evidência de alienação parental.
Na nossa lei, por coincidência, consta a conduta de "apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente". Ou seja, a própria lei já menciona "falsa denúncia".
No momento do divórcio, é comum que existam questões a serem resolvidas, dores, tristezas e mágoas, mas isso não transforma mulheres em loucas raivosas e vingativas. Não existe uma "patologia" alienação parental que possa ser relatada em relatório técnico como se fosse uma doença. Espera-se de uma mulher que foi agredida ou que noticiou violência contra seu filho que se empenhe em restabelecer o contato de seus filhos com o agressor --algo impossível a olhos humanos porque contraria o instinto de fugir do perigo.
O mundo jurídico ainda trabalha com uma noção ideal de vítima. Estudos apontam que há "vítima ideal" quando a pessoa é fraca, o agressor do tipo "odioso", não há relacionamento entre as partes nem qualquer animosidade, de modo que a vítima não tem culpa pelo crime. Nos processos, esse padrão ainda existe: a vítima não pode ter nenhum "motivo para prejudicar o réu" (se foi agredida ou traída, por exemplo, alega-se que está agindo por vingança), não pode mudar a versão, deve manter um depoimento firme e sem quaisquer contradições e não se retrata.
Essa vítima não existe.
Mulheres e crianças sofrem com a violência e, como vítimas, não estão isentas. A violência contra a mãe é violência psicológica contra os filhos, conforme prevê a Lei do Depoimento Especial. Além disso, em razão do Ciclo da Violência, do Desamparado Aprendido e da Síndrome da Adaptação da Criança Vítima de Abuso Sexual, há uma tendência a que mulheres vítimas e crianças se retratem, em razão da falta de apoio e estigmatização. São teorias cientificamente comprovadas que demonstram as razões de retratação. Essa retratação não significa mentira, ao contrário, é uma evidência de que está a pessoa está vitimizada.
Estereótipos de gênero impregnam não só a Lei de Alienação Parental, como sua aplicação, em especial pelos Tribunais de Família, mas também com reflexos na área penal para absolver violadores de mulheres e crianças.
Em 2022, o Brasil recebeu uma Carta da ONU pedindo ao novo governo a revogação da Lei de Alienação Parental, pois:
"A lei levou à proliferação da teoria da alienação parental pelos tribunais de família - apesar da ausência de justificação clínica ou científica para tal. A lei também permitiu, em grande medida, que os pais acusados de violência doméstica e abusos fizessem com sucesso falsas acusações contra as mães com as quais se encontravam em disputas de custódia. Os tribunais de família rejeitam regularmente as alegações de abuso sexual das crianças apresentadas pelas mães contra seus pais ou padrastos, desacreditando e punindo as mães, incluindo através da perda dos direitos de custódia dos filhos."
Há inúmeros julgados que revelam esse perigo.
Em um processo de estupro de vulneráve no Riol, o réu foi absolvido porque o laudo pericial era negativo, embora os laudos de estupro sejam negativos em regra, já que --ao contrário do que se imagina-- os vestígios desaparecem rapidamente, e havia "laudos técnicos anteriores que apontam a presença de indícios de alienação parental praticada pela genitora".
Em outro caso, no RS em 2020, em uma ação incidental de alienação parental, o homem acusado de violência alegou que a mulher era "uma mãe alienadora, que é fantasiosa e totalmente distorcida da realidade, e o tribunal acatou essa tese:
"Com efeito... A genitora criou uma história, que talvez tenha passado a acreditar, em que o pai figurava como um monstro abusador, de quem a mãe iria proteger a filha, ao contrário do que a própria genitora fez."
Em âmbito mundial, embora não exista uma lei específica como a brasileira, alguns tribunais usam o conceito de alienação parental, o que foi repudiado pela ONU. Em 2023, o informe da relatora especial "Custódia, violência contra as mulheres e violência contra os filhos" apontou que "há tribunais que, apesar de existirem antecedentes de violência doméstica, têm invocado o pseudoconceito de alienação parental ou tem culpado a mãe de isolar deliberadamente os filhos de seu pai, inclusive quando a segurança da mãe ou de seus filhos estava em perigo".
O texto menciona o Brasil expressamente e informa que aqui a alienação parental guarda um evidente componente de gênero já que em 66% dos casos as mães eram acusadas de alienação parental e os pais, em 17%,, mas os pais "faziam mais acusações infundadas do que as mulheres".
Uma importante evolução foi a proibição de guarda compartilhada quando há "probabilidade de risco de violência" e o juiz deve questionar as partes nas ações de guarda sobre a existência de risco, concedendo um prazo de cinco dias para a apresentação de provas ou indícios.
Há um longo caminho para que o Brasil se torne um país seguro para as mulheres mas, enquanto por aqui existir uma lei que desqualifica depoimentos de mulheres e crianças com base em uma teoria refutada mundialmente, nenhuma criança ou mãe estará segura. Estamos juntas pela revogação dessa lei discriminatória. Revoga LAP já!
Valéria Scarance é Professora Doutora de Processo Penal - PUC-SP, autora de livros, palestrante nacional e internacional