Explorar petróleo na Amazônia é fazer guerra para ter paz, diz ex-Ibama

Para a coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, as justificativas dadas pelo governo do presidente Lula (PT) para defender a exploração de petróleo na bacia da foz do rio Amazonas são absurdas. "É como se dissesse, eu vou gerar uma guerra para conseguir paz. Não faz sentido: na verdade, está piorando o problema", disse ela em entrevista ao UOL.
Suely presidiu o Ibama entre 2016 e 2018, nos governos de Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB). Nesse período, negou cinco pedidos de exploração na região, na costa do Amapá —na última segunda-feira, o governo leiloou mais 19 blocos na área, sob protesto de indígenas e ambientalistas.
Ameaça ao bioma
Com a assinatura dos contratos das novas áreas leiloadas, haverá 28 blocos concedidos na região —nenhum recebeu autorização para perfuração até o momento. Para conseguir a licença, as empresas concessionárias devem provar a segurança da operação, além da capacidade de resposta em um eventual acidente.
Esse leilão teve um resultado: está claramente declarada a prioridade do governo e da Petrobras pela exploração na foz do Amazonas. É uma área que, para mim, pelas condições, seja no mar, seja na costa, não deveria haver exploração.
É uma área sensível biologicamente, e complexa em termos de operação de perfuração e produção de petróleo. Nós temos características ecológicas únicas na região, que tem correntes fortíssimas, que a torna propícia a acidentes. Em um eventual vazamento, em menos de um dia, a maior parte do óleo já estaria em águas internacionais, e não se sabe ainda quanto desse óleo voltaria para a nossa costa.
Na nossa costa, tem manguezais riquíssimos, enormes —os manguezais são berçários para a vida marinha, e importantes sequestradores de carbono da atmosfera. Também há o grande sistema recifal amazônico, que é o nome do ecossistema que se chama de corais amazônicos. Isso porque, além de corais, o sistema tem outras espécies, que ainda foram pouco estudadas. Existe uma tentativa de subvalorizar [a importância desse ecossistema], e é até difícil contra-argumentar, porque o Brasil ainda não o estudou como deveria.
Justificativa 'absurda'
O governo tem defendido a exploração da região, argumentando que o dinheiro arrecadado poderia financiar a transição do petróleo para fontes de energia renováveis. "Por que a gente não pode explorar essa riqueza para fazer outra riqueza acontecer, que é a transição energética?", questionou o presidente Lula em entrevista publicada na quinta-feira. Outro motivo aventado é que países vizinhos, como a Guiana e o Suriname, já exploram a região, e que uma eventual demora do Brasil em embarcar na exploração poderia comprometer o volume descoberto.
Essa justificativa é absurda.Fere as leis da lógica justificar a expansão [da exploração do petróleo] pela transição. A transição é para reduzir o uso de combustíveis fósseis e substituir esse uso. Aí você vai ampliar esse problema para colocar dinheiro na solução dele? Isso vai além da lógica. É um pouco como dizer: "eu vou gerar uma guerra para conseguir a paz". Não faz sentido, na verdade, está piorando o problema.
Não tem um grande mar de petróleo lá embaixo que é compartilhado por todo mundo. O óleo está incrustado nas rochas. Inclusive, tem a possibilidade de ter petróleo em um dos blocos e não ter em outro próximo.
O governo Lula tem avanços. Ele reconstruiu a governança climática ambiental, tem um esforço grande em controle do desmatamento. Tudo isso tem que ser reconhecido. A equipe da ministra Marina [Silva, do Meio Ambiente] faz um trabalho importante, mas a grande contradição do governo é na área ambiental. O Brasil não vai ser um líder climático e um megapetroleiro ao mesmo tempo, isso é incompatível.
Acabou de sair uma nova carta de posicionamento do Brasil, chamando os países a ações mais efetivas na área climática. Eles tentam assumir essa liderança, mas no meio disso tem essa contradição, essa sanha petroleira, acho que é possível usar essa expressão.
Exploração de petróleo beneficia quem?
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP) também é grande defensor da perfuração do local, que poderia levar recursos para seu estado natal. Suely, entretanto, questiona se os royalties chegariam até a população amapaense. Lembra que o Brasil já é um grande exportador de petróleo e que, mesmo assim, os municípios que recebem os recursos vindos dessa produção seguem com problemas graves de infraestrutura. Ela acredita que o licenciamento do bloco 59, uma luta da Petrobras desde 2020, deve sair logo, mas que os retornos demorarão para chegar.
Os royalties só chegariam em uns dez anos. Primeiro, precisa obter a licença de perfuração, e depois, a de produção. Se acharem petróleo, e acharem petróleo em condições de produção —ou seja, em quantidade suficiente e possível de extrair—, ainda precisa construir o equipamento da plataforma: tudo isso é construído para o local, não tem pronto na prateleira. Criou-se uma narrativa como se a renda já viesse agora para a população do Amapá.
O valor [do leilão] não é nada que vá resolver os problemas do país [o pagamento inicial das empresas no leilão foi de R$ 844,3 milhões]. Mas está muito forte isso no governo, essa busca da expansão de petróleo até como fonte de renda, que o governo está precisando fechar as contas. O petróleo gera dinheiro, mas para os acionistas e para o caixa do governo, não necessariamente tem resolvido problemas sociais nas regiões petroleiras tradicionais do país. Maricá (RJ), por exemplo, recebe um valor considerável de royalties, mas não tem quase nada de coleta e tratamento de esgoto.
A produção de petróleo offshore gera dinheiro para quem investe, não gera distribuição de renda.Há outros caminhos para obter renda para a população do Amapá que garantem muito mais justiça social, com proteção ambiental e respeito à floresta em pé.
Quem ganha esse dinheiro? Quem vai lucrar? Eles fazem muito a comparação com a Guiana, que está sim explorando um monte de petróleo, e houve um aumento da renda per capita. A Guiana tem 800 mil habitantes, é lógico que a renda per capita vai aumentar bastante. No Brasil, com o tamanho da população que temos, não teria os mesmos efeitos.