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"Nego Fugido, Memórias Quilombolas": imersão na resistência afro-brasileira vista por Nicola Lo Calzo

20/06/2025 13h58

A exposição "Nego Fugido, Memórias Quilombolas", do fotógrafo e pesquisador italiano Nicola Lo Calzo, oferece uma imersão na memória da resistência quilombola no Brasil, mais precisamente em Acupe, no Recôncavo Baiano. O projeto é apresentado no centro de arte Ygrec-ENSAP, em Aubervilliers, ao norte de Paris, até 12 de julho. A curadoria é da brasileira Ioana Mello.

Patrícia Moribe, de Aubervilliers

O convite para entrar nesse mundo misterioso vem já de fora, da rua, através das vitrines com trabalhos que fazem parte da exibição. No interior do espaço central, uma cortina transparente com imagens forma um simbólico círculo, uma roda.  

"Nego Fugido" é uma prática performática e viva da comunidade quilombola de Acupe, na Bahia, Brasil. O ritual, mantido vivo desde o final do século XIX pela Associação Cultural Nego Fugido, encena a desumanização da escravidão e a violência escravagista, mas também a resistência a essa desumanização, representando a luta dos escravizados por sua abolição, independência e liberdade.

"Mais do que uma mera encenação do passado, o Nego Fugido permite à comunidade lembrar o passado e inscrevê-lo nas lutas contemporâneas pelo acesso à terra e aos recursos naturais, como os do mangue e do mar, na Baía de Todos os Santos e arredores", explica Nicola Lo Calzo. "Trata-se, portanto, de uma prática com uma importante dimensão política. A performance busca construir uma narrativa soberana e oferecer uma perspectiva alternativa sobre o passado colonial, ressoando ainda hoje."

Fuga e criação de espaços de liberdade

Lo Calzo explica que a questão da memória da fuga e do marronagem (movimento de fuga e estabelecimento de comunidades independentes de escravizados, algo como "quilombolagem", se a palavra existisse em português) o interpela profundamente, ressoando com sua própria experiência como minoria sexual. Ele explora como essa experiência de fuga, que permite a criação de espaços de liberdade, pode se conectar com outras experiências de marginalidade e subalternidade.

"O que me interessa nessas práticas é também sua capacidade de produzir espaços de criação e de liberdade e de autonomias que são antinormativas, que vão, diríamos, além das linhas normativas convencionais".

Sua prática fotográfica é construída como uma "prática de relação", feita através de encontros e do estabelecimento de laços com as comunidades, permitindo-lhe acessar espaços considerados sagrados e viver o cotidiano, como a pesca de manguezal.

O artista destaca a particularidade da memória defendida pela Associação Cultural Nego Fugido: a memória do "pequeno marronagem", ou a fuga cotidiana. Ele explica que, diferentemente da figura heroica e idealizada dos grandes quilombos e seus líderes, como Zumbi dos Palmares, o Nego Fugido narra "a memória da fuga cotidiana. É quando a gente foge duas horas da plantação para voltar depois, para ir ver o seu amor, por exemplo; é quando a gente foge da plantação um dia para ir ao mercado ou para ir pescar no mangue, e depois a gente volta". Essa abordagem revela a complexidade e a humanidade das pessoas escravizadas que encontravam espaços de liberdade dentro do próprio sistema de violência.

Caçador de escravos e Exú

Uma figura central e complexa na performance do Nego Fugido é a do "caçador de escravos". Lo Calzo explica que, na encenação, esse personagem, frequentemente negro, não é polarizado entre o bem e o mal. Ele afirma que a comunidade se reapropria "completamente dessa figura para fazer dela justamente uma figura que representa todas as ambiguidades da escravidão. Há o bem, há o mal, mas é uma figura complexa".

O caçador de escravos, que inicia a performance caçando os escravizados, no final os ajuda a se libertarem e a prenderem o "Rei Pedro", reorganizando a ordem social. Por isso, o caçador de escravos é associado a Exu, o orixá dos paradoxos e mediador entre os vivos e os mortos, que tem o poder de subverter o status quo. Lo Calzo frisa: "ele [o caçador de escravos] é o mestre de toda a performance. É ao mesmo tempo uma figura de opressão, mas também uma figura de emancipação".

A cor vermelha, com destaque na exposição, é um fio condutor que remete a essa figura e à prática do Nego Fugido. A comunidade usa o vermelho para pintar os lábios, simbolizando a violência e o sangue, mas também o poder de Exu. Essa escolha da cor está presente nas vitrines da exposição e nas prateleiras.

Além do Nego Fugido, Lo Calzo menciona "Binidittu" (Benedito), que explora a figura de São Benedito, o Mouro. Nascido na Sicília como filho de escravizados, ele se tornou um símbolo de liberdade para os sicilianos e de resistência e emancipação para os escravizados na América Latina, incluindo o Brasil. São Benedito, que teve o processo de canonização mais longo da Igreja Católica por ser uma figura "ambígua" e de revolta, foi ressignificado pelas comunidades e sincretizado com cultos afro-brasileiros.

Tanto Nego Fugido quanto Binidittu fazem parte do projeto "Kam", uma investigação iniciada em 2010 sobre as memórias contemporâneas das resistências à escravidão e ao marronagem, tema da tese de doutorado que Lo Calzo defendeu neste ano.

Resistência e acessibilidade

A curadora Ioana Mello enfatiza o fato de a exposição acontecer em um subúrbio carente de Paris. "As comunidades retratadas, como os quilombolas de Acupe, são muitas vezes completamente invisibilizadas e tornadas periféricas pelo olhar central. Estar em Aubervilliers permite uma conexão potente com essa invisibilidade e a força de suas histórias", aponta.

Mello também destaca o esforço para tornar a arte acessível ao público de Aubervilliers.

"É um espaço que tem duas vitrines bem grandes e que foram bem pensadas para fazer parte da exposição. Não é apenas um detalhe da exposição, é a exposição também, porque a gente está num bairro onde as pessoas não têm acesso à arte, têm um certo medo desse cubo branco", explica.

Para incentivar a interação, a prefeitura de Aubervilliers vai espalhar dez painéis fotográficos da exposição pela cidade.

O conceito da "roda" (círculo) é fundamental na performance do Nego Fugido e foi incorporado ao design da exposição. Essa roda, que representa a forma como o Nego Fugido se manifesta no espaço público com a "caça" entre caçadores e escravizados ao redor dela, será replicada nas exibições programadas no Brasil. Após a temporada na França, a exposição seguirá para a Aliança Francesa de Brasília, no festival FotoRio e o Museu Afro-Brasileiro (MAFRO) em Salvador.