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'Fiquei tetraplégico ao furar uma onda e me reinventei na pintura'

Leandro Portela perdeu os movimentos após um acidente na praia e hoje é artista visual - Arquivo pessoal
Leandro Portela perdeu os movimentos após um acidente na praia e hoje é artista visual Imagem: Arquivo pessoal
do UOL

Do UOL, em São Paulo

18/06/2025 05h30

Leandro Portella, 44, dava um último mergulho no mar de Ubatuba (SP), em um fim de tarde das férias de verão, quando, de repente, percebeu que havia perdido os movimentos do corpo. Consciente, mas sem entender o que estava acontecendo, foi retirado da água por irmãos e amigos e levado pelo resgate ao Hospital das Clínicas, em São Paulo. Lá, recebeu o diagnóstico: havia quebrado o pescoço e ficou tetraplégico.

Durante os seis meses em que ficou no hospital, Portella conheceu uma ferramenta que daria um novo sentido à sua vida: a pintura. Usando o pincel com a boca, começou a pintar como forma de terapia, mas, com o tempo, a relação com a arte foi se transformando em algo muito maior. Ao UOL, ele contou sua história.

  • ENVIE SUA HISTÓRIA: acha que a sua história de vida merece uma reportagem? Envie um resumo para o email enviesuahistoria@uol.com.br. Se possível, já envie fotos e os detalhes que nos ajudarão a avaliá-la. A redação do UOL pode entrar em contato e combinar uma entrevista.

"Vivi um momento que mudaria minha vida"

"Nasci em São Paulo, mas aos cinco anos minha família se mudou para Araçoiaba da Serra, onde cresci e finquei minhas raízes. Foi aqui que descobri a beleza das coisas simples e a força dos recomeços.

Aos 17 anos, durante uma viagem em família para Ubatuba, vivi um momento que mudaria minha vida. Estava no fim das minhas férias, em janeiro de 1999. Na ocasião, estava com meus irmãos e amigos. Já era fim da tarde e fui dar meu último mergulho no mar e voltar para a casa de praia.

Fui furar uma onda e, não sei se bati a cabeça no fundo do mar ou se foi a força da própria onda, mas perdi todos os meus movimentos. Tinha quebrado o pescoço. Fiquei um tempo na água, perceberam e foram me resgatar.

Lembro de estar na areia esperando o resgate. Tinha muita gente em volta, os curiosos. Mas eu não tinha noção do que estava acontecendo. Não sentia dor, estava me sentindo bem, mas não conseguia me mexer. Foi tudo uma confusão até chegar o resgate.

Passei seis meses internado no Hospital das Clínicas, em São Paulo, entre dores físicas e silêncios profundos, tentando entender o que viria depois. Acredito que minha mãe deve ter recebido o diagnóstico de lesão medular antes, mas fui entendendo com o tempo.

No hospital, sempre tive a esperança de melhorar, de sair de lá andando. Os médicos falavam que era uma situação demorada, mas para um jovem de 17 anos, uma semana já era muito. Só que eu não sabia que iria demorar uma vida toda. Um dia, descobri que era mais grave do que eu imaginava.

Foi um período de aceitação. Tive depressão no início, mas com o apoio da família e dos amigos, comecei a me adaptar.

Conhecendo a pintura

leandro portella - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Leandro Portella pinta quadros com a boca
Imagem: Arquivo pessoal

No HC conheci a artista Eliana Zagui, 51, [que morou por mais de quatro décadas no hospital]. Ela ficava no quarto ao lado. Eu ia visitá-la e ela vinha me visitar. A gente também se mandava cartas, tínhamos bastante contato. Ela havia contraído poliomielite na infância e perdeu os movimentos do corpo. Lá, ela fazia quadros pintando com a boca.

Eu não havia tido contato com a pintura antes e não nenhuma habilidade artística, mas comecei a pintar como forma de terapia. Era uma forma de ocupar o tempo. Depois, vi que daria para vender as obras, gerar renda, e virou uma profissão.

Na época, tinha terminado os estudos do Ensino Médio e iria prestar vestibular para odontologia. Mas o que eu queria mesmo era fazer educação física porque adorava esportes.

Depois que conheci a pintura, decidi fazer aulas particulares. Minha ex-professora de educação artística da escola veio me ajudar e foi algo novo tanto para ela quanto para mim. Ela nunca tinha dado aula para uma pessoa tetraplégica e eu não sabia nada de pintura.

O interessante foi que a pintura acabou me dando uma forma de expressão. Eu podia colocar na tela alguns sentimentos, situações que estava passando no momento. Isso me ajudou bastante — e ajuda até hoje. Não sinto dor ou desconforto quando estou pintando. O prazer naquele momento é sempre muito maior.

Com o tempo, fui criando meu próprio estilo e a minha técnica. Sei pintar com a boca e a amplitude de movimento que tenho com o pescoço não é muito grande. Por isso, pinto os quadros por partes. Começo em um canto, viro o quadro e vou para o outro e vou finalizando ele assim. Essa falta de mobilidade acabou sendo uma técnica específica para mim, criando a minha marca de pintura diferente.

Além disso, com a internet, a pesquisa para referências é muito ampla. No começo, eu pintava muito mais abstrato, porque conseguia me expressar mais. Com a minha professora, fizemos uma releitura de quadros do Picasso, que foi a minha primeira referência no mundo das artes.

Da política à literatura

Uma outra referência para mim é a senadora Mara Gabrilli (PSD-SP). Ela tem uma lesão muito parecida com a minha. Nos conhecemos e ela me estimulou a entrar na política para ajudar as pessoas com deficiência. Me candidatei a vereador de Araçoiaba da Serra pelo PSD e em 2012 fui eleito.

Por isso, decidi que era hora de entrar na faculdade e comecei a cursar Gestão Pública, para continuar nessa vida política. Era um curso semi-presencial, ia duas vezes pela semana. As pessoas da sala sempre me ajudaram bastante e a faculdade me dava toda a estrutura. Me formei em 2015.

Em 2020, fui reeleito e meu mandato terminou agora, em 2024. Voltei a focar meu trabalho na parte artística, que é a minha paixão, mas ainda tento ajudar no que for possível dentro da política.

Sempre compartilhei nas redes sociais meus quadros e alguns textos sobre minha experiência. As pessoas curtiam, mandavam para familiares e fui guardando essa produção.

Fui escrevendo esses textos aos poucos, ao longo dos anos, por meio de um software chamado Motrix. Ele foi desenvolvido pela UFRJ, mas já saiu de linha. Só que sou um dinossauro da tecnologia e mantenho ele. Soletro as palavras para ele e foi assim que escrevi os textos. Depois, tive ajuda de um dos meus irmãos e de um outro colega para revisarmos.

portella - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Portella desenvolveu técnica própria para pintar os quadros
Imagem: Arquivo pessoal

Um dia, a Associação dos Pintores com a Boca e os Pés entraram em contato comigo para eu fazer parte. Fiz todo o processo seletivo e fui aprovado. O bom de estar lá é trocar experiências. Até a técnica é particular de cada um, já que cada artista tem uma limitação específica de movimento, um suporte para segurar o quadro distinto. A gente se ajuda bastante.

Neste ano, decidi publicar os meus textos no livro "Depois do Mergulho - Crônicas de uma Vida Reinventada". São crônicas, em ordem cronológica, desde o acidente até situações que vivo como cadeirante. A minha história também foi contada no documentário "Ressignificar".

A mensagem que gosto de deixar é a de que viver vale a pena. Problemas todo mundo tem, mas é necessário atravessar as dificuldades e viver bem. A vida me inspira a pintar. Estar vivo me inspira e espero continuar levando a minha arte às pessoas. Meu corpo é outro, mas minha essência continua intensa, curiosa e apaixonada pela beleza de existir. Minha arte não é apenas o que eu faço. É quem eu sou."