A santa que fez um papa sair de exílio: 'Não seja uma criança tímida'

"Deus quer que você nomeie aqueles que são bons e virtuosos e que não temem a própria morte. Deus não quer que status, grandeza e pompa mundana sejam critérios para sua seleção — já que Cristo não está em conformidade com isso —, então considere apenas a grandeza e a riqueza da virtude."
A frase acima não foi tirada de um tratado teológico nem sermão moderno: foi pronunciada por Catarina de Siena, mística italiana do século 14, em uma carta dirigida diretamente ao papa Gregório 11, em um período marcado pela instabilidade e divisões internas na Igreja Católica.
Canonizada em 1461 e declarada doutora da Igreja em 1970, Catarina se destacou por sua atuação firme e surpreendente para uma mulher de sua época — especialmente junto aos líderes da Igreja.
Analfabeta, a jovem ficou conhecida por ter ditado centenas de cartas endereçadas a autoridades religiosas e civis: papas, cardeais, arcebispos, bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas, além de reis e rainhas, governantes, magistrados e embaixadores.
Em suas correspondências, abordou desde como conciliar a vida espiritual com as responsabilidades cotidianas até orientações sobre como deveriam ser o governo de ordens religiosas e as estratégias políticas para pacificar os conflitos entre reinos, repúblicas italianas e os estados pontifícios.
Mas o principal foco da santa foi pressionar (inclusive pessoalmente) o papa Gregório 11 a voltar para Roma e sair de Avignon, na França, onde os pontífices viveram entre 1309 e 1377, período conhecido como "Cativeiro de Avignon".
"Naquela época, uma mulher não podia falar direto com o papa. Ela sempre precisava de um intermediário, geralmente o líder da sua congregação religiosa", explica Maria Cecília, professora de história da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná).
"Só que Catarina de Siena consegue fazer esse diálogo direto com o papa. Estamos falando de papas e autoridades da Igreja e do Estado que paravam para escutá-la com atenção", destaca a pesquisadora, que também é coordenadora do Programa de Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos e Políticas Públicas da PUC-PR.
A fama da jovem na região da Toscana, na Itália, e suas experiências místicas ajudam a entender o interesse e respeito das autoridades por Catarina, segundo Maria Cecília, que escreveu o artigo "Catarina de Siena: mística e intercessora pela unidade da Igreja Católica durante o Grande Cisma (1347-1380)".
Jejum, caridade e língua afiada: quem era a "conselheira dos papas"?
Catarina nasceu em 1347, em Siena, cidade situada na região da Toscana, na Itália. Ela foi a vigésima quarta e penúltima filha de Jacopo e Lapa Benincasa, comerciantes que tinham uma oficina de tinturaria no andar térreo de casa.
Aos seis anos, depois de ter tido uma visão mística durante um passeio com os irmãos, fez voto de virgindade. Anos depois, pressionada pelos pais para que se casasse, ela decidiu cortar os cabelos em sinal de recusa.
A punição imposta por sua mãe foi obrigá-la a cuidar de todas as tarefas domésticas e proibi-la de entrar em seu "quarto de oração" — um espaço onde costumava se recolher para rezar.
Catarina aceitou os castigos — com o tempo, seus pais cederam à decisão da filha. Ela queria entrar na ordem penitente de São Domingos, dirigida por frades, mas constituída de leigos. Em Siena, esse grupo era formado principalmente por viúvas que decidiram não se casar outra vez.
As "mantellatas", como eram conhecidas devido ao uso de um manto preto, não viviam em conventos: moravam em suas próprias casas e conciliavam as atividades familiares ou profissionais com um cotidiano de oração, penitência e caridade. Como nenhuma delas era tão jovem quanto Catarina, inicialmente houve resistência em aceitá-la no grupo, mas a santa conquistou a piedade das integrantes depois de ter adoecido por ter feito jejuns severos, um sinal de sua devoção.
"Seus biógrafos relatam que, por muito tempo, ela só se alimentou de hóstia consagrada, quando ia à missa", afirma Maria Cecília.
Em 1367, Catarina afirmou que teve uma visão mística em que Jesus pedia para ela sair da cela de seu quarto e servir as pessoas em sua cidade.
"Através de ações de caridade, Catarina saiu da obscuridade do claustro em que vivia em sua residência e adquiriu notoriedade no plano local e regional", descreve o historiador Caio César Rodrigues, em sua dissertação de mestrado "A experiência mística da 'conoscenza di sé' no ideário político de bom governo de Catarina de Siena (1347-1380)".
Catarina cuidava das viúvas enfermas de seu grupo e também dos doentes do hospital Santa Maria della Scala e do leprosário San Lazzaro, com relatos de curas consideradas milagrosas. Foi assim que se tornou uma figura respeitada na cidade.
De acordo com Maria Cecília, por volta de 1370, a jovem já havia sido reconhecida por sua alta espiritualidade e adquirido o costume de "escrever cartas". Seus seguidores —pessoas que a procuravam para pedir orações ou conselhos—, conhecidos como "catarinati", é que escreviam para ela.
"Ninguém tem autoridade por si só, você também precisa que as pessoas apoiem aquele poder. E Catarina tinha o apoio de sua comunidade não só pela fama de mística, mas também porque as autoridades, assim como ela, queriam que o papa voltasse para Roma", explica a professora de história.
Os papas da Idade Média nem sempre viveram em Roma. O papado ficou na cidade francesa de Avignon por 78 anos, tendo sete papas, todos eles franceses e influenciados pelos interesses do monarca da França, o que abalou a imagem do papado em toda a cristandade.
"A relação entre os papas e os reis franceses nesse período era de amor e ódio, no sentido de que eles se fortaleciam, mas estavam sempre em conflito, porque um queria se sobrepor ao outro", define a pesquisadora.
O conflito teve início por questões fiscais. No fim do século 13, o rei Filipe 4º da França entrou em confronto com o papa Bonifácio 8° porque usou o dinheiro arrecadado para despesas da Igreja para financiar suas guerras pessoais, sendo repreendido pelo pontífice. A tensão se agravou até o monarca ordenar o sequestro do papa, que morreu pouco depois de ser libertado.
Os papas alegavam que não era seguro permanecer em Roma, já que a cidade estava mergulhada em conflitos internos entre as famílias aristocratas, mas a historiadora Maria Cecília aponta que a decisão foi, sobretudo, resultado de manobras políticas e da crescente influência dos reis da França sobre o Vaticano.
No ano em que Catarina de Siena nasceu, o papado tinha completado 38 anos de sua transferência para Avignon. Com o pontífice fora dos territórios pontifícios, guerras civis eclodiram em várias cidades italianas, que se tornaram cenário de violência e disputas entre famílias aristocráticas.
É nesse contexto que Catarina toma para si a missão de trazer o papa de volta para Roma, convencida de que a medida era fundamental para a renovação espiritual e política da Igreja. Antes dela, Santa Brígida da Suécia (1303-1373) já havia feito apelos semelhantes: em 1350, conclamou o papado a regressar à Cidade Eterna e dedicou 20 anos de sua vida a essa causa — sem sucesso.
O que diziam as cartas de Catarina para o papa
Em uma das cartas dirigidas ao papa Gregório 11, que data de março de 1376, Catarina o exorta a enfrentar a corrupção do clero e reformar a Igreja sem medo de desagradar os outros.
Ela usa a metáfora de um jardim para falar da Igreja e afirma que o papa é o "administrador desse jardim", sendo o responsável por remover "as flores fedorentas que estão cheias de lixo e infladas de orgulho".
"Use seu poder e arranque essas flores, jogue-as fora, para que elas não governem", diz um trecho da carta. "Plante no jardim flores de cheiro suave, pastores que sejam verdadeiros servos de Jesus Cristo; aqueles que estão preocupados apenas com a honra de Deus e o bem-estar das almas."
Em uma das biografias da santa, a escritora norueguesa Sigrid Undset afirma que "as cartas de Catarina expressam sua convicção de que, por ser a porta-voz do 'Senhor crucificado', é livre para escrever 'ordeno-vos' e 'deveis fazer o que vos aconselho'".
Catarina conseguiu atrair a atenção do pontífice. Em 1376, ela viajou para a França, onde foi recebida em audiência pelo papa, junto com seu confessor Raimundo de Cápua, que foi seu intérprete, já que ela falava somente sua língua toscana nativa, enquanto o francês falava latim.
"Ela é ouvida. O papa queria ouvi-la. Ele queria considerar aquilo que ela propunha, porque ele era um papa indeciso", afirma a historiadora Maria Cecília. "Então, ela disse para o papa que ele precisava ter uma mão firme e honrar o compromisso que fez com o Espírito Santo, e que, para isso, tinha que voltar para Roma."
Sua audiência inicial não trouxe os frutos desejados por Catarina, mas ela permaneceu na cidade. A italiana só deixou Avignon depois de o papa fazer planos para viajar a Roma.
Mais tarde, no entanto, Catarina recebeu uma carta do próprio pontífice informando que reconsiderava a decisão, pressionado pelos cardeais franceses. Eles haviam entregue ao papa uma mensagem atribuída a "uma pessoa tida como santa", alertando que ele seria envenenado caso retornasse a Roma.
Em resposta, a santa qualificou a atitude como um "trabalho do demônio em forma humana". Ela observou sarcasticamente que veneno pode ser comprado em todos os lugares e que "certamente há tanto veneno em Avignon quanto em Roma".
"Acho que ele quer te tratar como a mãe trata o filho quando quer desmamá-lo: ela coloca algo amargo no peito, para que ele experimente o amargo antes do leite, para que abandone o doce por medo do amargo; porque uma criança é mais facilmente iludida pela amargura do que por qualquer outra coisa", disse ela em uma carta.
E eu te imploro, em nome de Cristo crucificado, que você não seja uma criança tímida, mas viril. Catarina de Siena, em carta endereçada ao papa Gregório 11
Seja por convencimento ou influência de Catarina, o fato é que Gregório 11 deixou Avignon em setembro de 1376 em direção a Roma.
"Não tem nenhuma carta que o papa tenha escrito dizendo que Catarina de Siena foi decisiva para ele voltar para Roma, mas há muitos indícios. Ele a recebeu, a escutou, mesmo que tenha sido intermediado por um tradutor, mas ela estava ali. E ela tinha essas cartas trocadas com ele. Eram preocupações que não eram só dela, mas que o papa também compartilhava", diz Maria Cecília.
Oralidade nas práticas místicas de mulheres leigas
Para a historiadora, o reconhecimento de novas fontes no campo de estudos, como cartas antes ignoradas, permite reavaliar o papel de mulheres de destaque, como Catarina de Siena. "O fato de muitas vezes não poderem tomar decisões formais não significa que não tenham influenciado os rumos da história", afirma.
Em seu artigo, a pesquisadora afirma que, certamente, no contexto da Baixa Idade Média, Catarina não foi a única mulher a tomar a palavra. Várias outras mulheres, animadas por um forte sentimento religioso como ela, não só escreviam ou mandavam escrever suas visões e revelações místicas como ainda se imiscuíram em meio a conflitos políticos e sociais — Santa Hildegarda de Bingen (1098-1179) é outro exemplo citado pela historiadora.
Na homilia em homenagem à proclamação de Catarina como doutora da Igreja, o papa Paulo 6° reconheceu que "o feliz êxito" que ela obteve "foi realmente a obra-prima da sua operosidade, que perdurará durante os séculos como a sua maior glória e constituirá um título muito especial de eterno reconhecimento por parte da Igreja".