Ministros contrários à prisão de Collor abrem brecha à defesa de Bolsonaro

Os votos dos quatro ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) que se opuseram à decisão do ministro relator Alexandre de Moraes pela prisão do ex-presidente Fernando Collor abrem brecha para defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro em caso de eventual condenação, segundo especialistas ouvidos pelo UOL.
O que aconteceu
Votos vencidos dos ministros que pediram a aceitação dos embargos infringentes são brecha para defesa de Bolsonaro. "A defesa do ex-presidente pode fazer a mesma coisa e usar os argumentos dos votos para dizer que o regimento interno do STF deve ser alterado", afirma Gustavo Scandelari, advogado criminalista e sócio do escritório Dotti Advogados. Embargos infringentes são recursos que têm como objetivo unificar decisões de tribunais quando há votos distintos em órgãos colegiados.
Divergiram da decisão de Moraes pela prisão de Collor os ministros André Mendonça, Gilmar Mendes, Luiz Fux e Kassio Nunes Marques. "Eles votaram pelo conhecimento dos embargos infringentes do ex-presidente, ou seja, foram votos pelo conhecimento e julgamento de um recurso", afirma Scandelari. A decisão poderia levar à soltura de Collor até o final do julgamento.
O caso Collor pode representar reinterpretação no regimento que beneficia diretamente Bolsonaro, aponta Davi Tangerino, advogado criminalista e professor de Direito Penal na Uerj. "O regimento interno não fala de [embargo] infringente para decisão de turma porque em 2023 [ano em que ocorreu a condenação de Collor] só havia ação penal do Pleno", afirma.
Artigo do regimento interno do STF diz que cabem embargos à decisão não unânime do Plenário ou da turma. No plenário, segundo o regramento, cabem recursos se houver quatro votos divergentes. Segundo Scandelari, os embargos infringentes são cabíveis somente quando há condenação e os votos divergentes são pela absolvição completa —e não divergirem apenas com o pedido de revisão de pena.
O regimento da Corte não especifica o número de votos divergentes nas turmas, explicam os advogados. Isso abriria brecha para a defesa de Bolsonaro tentar, caso seja condenado, pedir os embargos infringentes. "Entende-se que no universo de 11 ministros, uma ou duas divergências não justificam reavaliar a matéria. Mas num universo de menor de ministros, como o de turma, isso seria cabível", afirma Rogério Taffarello, sócio do escritório Mattos Filho e professor da FGV-SP.
"Para advogados de defesa é dever entrar com embargos divergentes", diz Taffarello. Segundo o advogado, isso faz com que a argumentação dos ministros possa ser usada pela defesa do ex-presidente. "Na visão do Supremo, não está pacificado se o cabimento dos embargos divergentes deve ser somente para divergência na revisão das penas ou se na procedência da ação penal."
Será natural que ministros do STF façam uso dos argumentos dos ministros no julgamento de Bolsonaro em caso de condenação, afirma Taffarello. Ele lembra que o desfecho do caso não chega a abrir precedente porque no julgamento de Collor os votos que decidiram pela manutenção da prisão foram majoritários. "Mas os argumentos são válidos", diz.
Divergência na Corte
Collor foi condenado em maio de 2023 a oito anos e dez meses de prisão. A acusação é de que ele havia recebido R$ 20 milhões em propina entre 2010 e 2014 para viabilizar irregularmente contratos da BR Distribuidora com a UTC Engenharia para a construção de bases de distribuição de combustíveis.
No julgamento do novo recurso, os embargos infringentes, a alegação é de que deveriam prevalecer os votos vencidos em 2023. Os ministros que divergiram à época foram André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Moraes entendeu que esse recurso teria caráter meramente "protelatório" —ou seja, com o objetivo de prorrogar o processo. Com esse entendimento, o ministro relator decidiu pelo trânsito em julgado, quando não há mais possibilidade de recursos.
"Para ser restritivo, o direito penal tem que ser muito claro", ressalta Taffarello. "Quando se trata de condenar, é a liberdade do cidadão que está em jogo", afirma o professor da FGV-SP. O advogado alerta que quando se trata de direito penal os entendimentos têm de ser claros. "Quando se dá margem para a ambiguidade é preciso se dar a interpretação mais generosa", afirma.
Voto de Gilmar foi crítico ao regimento interno da Corte, analisa Scandelari. De acordo com o advogado, os embargos infringentes são julgados pelo plenário. "Pode-se dizer que o regimento interno do STF não é expresso em relação ao trâmite dos embargos infringentes. Isso retira dos réus o direito de reanálise".
Competência do Supremo para ações penais mudou nos últimos anos —o que provoca dúvidas em relação à aplicação do regimento. Taffarello lembra que houve uma reforma determinando que o julgamento das ações penais deveria ocorrer nas turmas. Depois, o ministro Fux promoveu uma alteração para que voltassem ao Plenário. E, por fim, voltaram às turmas. "Há um grande problema na legislação processual das competências dos tribunais", disse.
Como votaram os ministros contrários a Moraes
Mendonça abriu divergência ao votar em relação ao cabimento dos embargos infringentes. "Ante o exposto, com as devidas vênias aos entendimentos diversos, os presentes embargos infringentes devem ser conhecidos, viabilizando-se o seu respectivo processamento. Como consequência, afastado o trânsito em julgado da decisão condenatória, impõe-se a revogação do decreto prisional, determinando-se a expedição de alvará de soltura do clausulado", disse o ministro em seu voto.
Voto de Mendonça destaca o regimento interno do Supremo. Scandelari ressalta que o ministro chamou a atenção para o ponto que a lei interna não exige que os quatro votos sejam pela absolvição —podem ser diferentes apenas em relação à dosimetria das penas, por exemplo. "Ele foi claro e objetivo e está dizendo que, segundo o regimento, caberia o recurso." Fux acompanhou o voto de Mendonça, ministro abriu divergência.
Tema dos recursos não está "pacificado" na jurisprudência do STF, ressaltou Gilmar em seu voto. A fala do ministro ocorreu em oposição a decisão de Moraes de que os embargos infringentes seriam meramente protelatórios. Gilmar citou a norma da Corte para legitimar seu voto. Para ele, o artigo não "parece exigir" que a divergência seja em relação à procedência da ação penal, mas "apenas que a decisão recorrida" quando envolver "quatro votos divergentes" —sem especificidades.
Nunes Marques também entendeu que deveria ser admitido o processamento dos embargos infringentes. "Entendo que, havendo ao menos quatro divergências, são cabíveis os embargos divergentes também em relação à dosimetria das penas."
O ministro também citou redução das penas para condenados pelos ataques aos Três Poderes no dia 8 de Janeiro. "Em inúmeras ações penais relativas aos tristes e lamentáveis eventos do dia 8 de janeiro de 2023, passei a reconhecer, em caráter excepcional, o cabimento dos embargos, embora não tivessem sido proferidos 4 (quatro) votos absolutórios próprios nos julgados."