Vício em bet: 'Perdi R$ 3.000 em minutos e usei Bolsa Família da minha mãe'

Aos 28 anos, a auxiliar de produção Catarina* acumula uma dívida superior a R$ 5.000 devido ao vício em jogos de apostas online. Ela só se deu conta do problema quando o comportamento começou a prejudicar familiares. Moradora da região metropolitana de São Paulo, ela contou ao UOL o que vive.
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'Perdi R$ 3.000 em minutos'
"Na metade de 2023, troquei de emprego e conheci umas meninas que sempre jogavam e falavam dos ganhos. No começo, não me interessei muito, mas comecei a ver que precisava de dinheiro e questionei sobre o nome do site. Entrei e fui jogar o bingo online, com R$ 10, R$ 20. Foi onde tudo começou.
Eu ganhava pouco no começo, às vezes R$ 50, mas já era um trocado que vinha do nada e ajudava muito. Aí começou a adicção: numa madrugada, que era quando eu jogava muito, estava com banca de R$ 10 [dinheiro disponível para jogar] e ganhei R$ 300. Apertei para jogar R$ 5 e de repente ganhei R$ 6.000 numa jogada.
Fiquei eufórica, não dormi a noite inteira, contei para o meu marido, mas já entrei na mentira, porque falei que ganhei menos. Ele sempre foi contra.
Desses R$ 6.000, não fiz nada com o dinheiro, fui apostando mais e perdi basicamente tudo, mas sempre tentando recuperar. Daí, foi ladeira abaixo. Comecei a perder salário, pegar dinheiro emprestado, mas sempre fui responsável e pagava minhas contas.
No final daquele ano, recebi o 13º salário, comecei a jogar e perdi tudo. Vi as meninas felizes porque tinha caído dinheiro na conta, mas eu estava triste.
Depois, troquei de emprego. Eu estava com dívida com agiota, parei de jogar por um mês e resolvi que naquele momento ia pagar as dívidas. Mas um dia joguei, ganhei dinheiro e o vício voltou: ganha, perde, pega dinheiro emprestado, tudo sem ninguém da família saber.
A gente não quer admitir, mas já era viciada. Um dia, eu estava no ônibus e entre uma parada e outra perdi R$ 3.000, em minutos. Cheguei em casa tremendo, mas não falei para ninguém. Liguei para o agiota, pedi dinheiro emprestado de novo e voltei ao ciclo de trabalhar para pagar agiota.
Fui mandada embora do trabalho, recebi R$ 7.000 de rescisão e perdi tudo em jogo. Eu tentava comprar uma rodada para ganhar, fiquei desesperada e liguei para uma conhecida para pedir dinheiro. Ela me emprestou um valor alto, contei a verdade e falei que ia parar, mas não parei.
'Mãe ficou decepcionada'
Nesse meio tempo, jogando, cheguei em uma banca de R$ 20 mil, um valor que eu poderia sacar, mas perdi tudo em duas semanas.
Um dia, estava sem dinheiro e usei o benefício do Bolsa Família da minha mãe na casa de apostas. A conta dela fica no meu celular, que eu controlo. Perdi tudo. Contei para ela na noite seguinte, e ela ficou decepcionada, mas o benefício não foi bloqueado.
Até hoje, não tive coragem de contar para o meu marido. Ele sabe que estou apertada, que ganho pouco, então fica sobrecarregado para ele. Só aí me dei conta do vício, quando começou a prejudicar outras pessoas.
Semana passada foi a última vez que joguei, estou indo um dia de cada vez. Devo o aluguel e tenho mais de R$ 5.000 em dívidas. Meu salário é para as contas da casa e para isso.
Considero que essa é a pior fase da minha vida. Nunca pensei em passar por isso. Tenho uma filha de 5 anos e saber que vou precisar me restringir em muita coisa com ela é o que mais me dói.
Em alguns sites, consegui bloquear meu acesso, mas em outros não. As pessoas acham que é safadeza, mas é um vício. Só não perdi mais porque não tinha.
Todo o contexto leva a isso: estar precisando, saber que pode ganhar e a vontade. Uma vez, numa batida [jogada] de R$ 1,20, ganhei R$ 900, mas, quando não ganha, vem a frustração.
Já pensei em tirar a vida, mas penso muito na minha filha. Se eu pudesse dizer algo para as pessoas, é para não entrar nessa."
Uso do Bolsa Família em bets
Beneficiários do Bolsa Família já enviaram R$ 3 bilhões para bets em um mês. O valor foi usado por 5 milhões de pessoas em casas de apostas virtuais apenas em agosto do ano passado, segundo análise do Banco Central.
Maior parte foi usada por chefes de família. Dos beneficiários, 4 milhões recebem diretamente a renda do governo e, juntos, enviaram R$ 2 bilhões (67% do volume total) por Pix para as bets naquele mês.
Famílias de baixa renda são as mais prejudicadas pelas apostas esportivas. "É razoável supor que o apelo comercial do enriquecimento por meio de apostas seja mais atraente para quem está em situação de vulnerabilidade financeira", avalia o Banco Central.
Governo criou um grupo para combater a prática. Em setembro, o Ministério do Desenvolvimento, Rede Federal de Fiscalização do Bolsa Família e Cadastro Único se uniram para discutir formas de evitar que o cartão do benefício seja usado para apostas online.
Mas o governo diz não ter meios técnicos para impedir uso. A Advocacia-Geral da União diz que não é possível distinguir o dinheiro do benefício de outras rendas recebidas pela família em determinada conta bancária. Uma vez repassado o benefício para a conta, o dinheiro passa a ser do titular, e o poder público perde qualquer influência sobre sua destinação.
Bets são 'grande pandemia'
Apostas online não são novidade, mas ganharam cara nova. Profissionais da área da saúde marcam 2018 como o ano da mudança, quando o governo Michel Temer aprovou a lei que liberava as casas de apostas esportivas. As bets vieram e, com gargalos na regulamentação, os casos de vício voltaram a subir.
Público é mais jovem. Pesquisa Datafolha mostra que 30% dos brasileiros que fazem apostas esportivas online têm de 16 a 24 anos. "A maioria é homem. Antes, eles chegavam no nosso ambulatório pedindo ajuda aos 40 anos. Hoje, pela intensidade do estímulo e facilidade de acesso, a média é de 25 anos", disse Katia Branco Domingues Valente, psiquiatra voluntária do Pro-Amiti (Programa de Transtornos do Impulso) do Instituto de Psiquiatria da USP.
O novo modo de jogar tem efeito no cérebro semelhante ao da anfetamina. O comportamento tem sido visto como uma grande pandemia pelos profissionais, que veem impacto no sistema de saúde também.
Onde buscar ajuda
Há poucos centros especializados em dependência por jogos de aposta no Brasil, como o Pro-Amiti, o serviço do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. A indicação é procurar assistência nas UBS ou nos Caps (Centros de Atenção Psicossocial) mais próximos.
Procure ajuda também no CVV (Centro de Valorização da Vida), que funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por email, chat e pessoalmente.
*O nome foi alterado para preservar a identidade