
"Ele não vai aguentar aquela vida do Vaticano", me preconizou Edoardo Luciani, o irmão mais novo do papa João Paulo 1º, aquele que ficou apenas 33 dias no trono.
Em 1978, o mundo teve três papas: com a morte de Paulo 6º, foi eleito o cardeal Albino Luciani, o terceiro papa vêneto só naquele século, que logo deixaria a vaga para o polonês Karol Wojtyla, nomeado João Paulo 2º.
Como correspondente do Jornal do Brasil na então Alemanha Ocidental, fui enviado para Roma. No intervalo de pouco mais de um mês, cobri os enterros e as eleições de dois papas, algo não muito comum na milenar Igreja Católica e na vida dos jornalistas.
Dias após a entronização de João Paulo 1º, estava a caminho de Canale D´Agordo, a pequena vila onde ele nasceu, na região de Veneza. Combinei com o Hermano Henning, correspondente da TV Globo, também na Alemanha, de irmos juntos. Mas, sempre muito ansioso, o amigo me deixou na mão e, quando cheguei à cidadezinha, já o encontrei entrevistando uns velhinhos na praça da matriz.
--Hermano, você não acertou de viajarmos juntos?, gritei para ele.
--E você acabou de estragar minha gravação, pô.
À noite, já reconciliados, fomos jantar em Veneza para comemorar o bom trabalho que conseguimos fazer naquelas poucas horas. Enquanto todo mundo estava preocupado em saber quais seriam os rumos da Igreja dali em diante e em investigar os bastidores da eleição do novo papa, a decisão de ir à sua cidade natal rendeu boas matérias.
Sob o título "Em Canale D´Agordo, já se sabia de tudo. E se rezou contra", o JB deu uma página inteira sobre a história dos Luciani e da magnifica região de onde veio João Paulo 1º.
Abaixo, trecho da matéria reproduzido no meu livro de memórias "Do Golpe ao Planalto - Uma Vida de Repórter" (Companhia das Letras, 2005):
Só os vaticanistas, a Igreja e o resto do mundo foram surpreendidos com a eleição de Albino Luciani para suceder Paulo 6º. É esta, ao menos, a conclusão a que se chega após uma rápida viagem para a Veneza dos papas e uma tarde de conversas com alguns moradores de Canale D´Agordo, pequena aldeia onde Albino nasceu. Entre eles, Edoardo Luciani, pai de nove sobrinhos do novo papa, que estava sentado sozinho num banco do jardim com ar preocupado. E ele foi contando:
"Prepara teu vestido preto, porque teu cunhado vai ser o novo papa e nós teremos que ir a Roma", profetizou Edoardo à mulher, Marinelli Antonieta, assim que soube da morte de Paulo 6º.
Desde o último inverno, quando Albino esteve com o irmão em Canale D´Agordo, a família Luciani não só sabia do destino de Albino, como temia por ele.
"Sabendo que Paulo 6º estava muito doente e dificilmente conseguiria atravessar o inverno, meu irmão pediu que todos em casa rezássemos bastante para que ele não fosse eleito seu sucessor", lembra o mestre-escola aposentado, de 62 anos, na sala de visitas do sobradão da família do papa.
"Liguei a televisão cinco minutos antes de o cardeal Felici falar o nome do novo papa. Eu tinha certeza, estava seguro de que seria meu irmão. Ele tinha medo de ser papa. Vivia aterrorizado com essa ideia!"
Ainda lhe perguntei de onde vinha essa certeza e qual o motivo desse medo?
"É muito simples. Veja, eu sou mais novo do que ele quatro anos e já estou aposentado. Me doem as costas, sinto-me cansado. Agora, você imagine o Albino, numa idade em que precisava descansar. Agora com essa vida de papa... Tem que acordar às 4 horas da manhã, trabalhar até as 11 da noite com tantos problemas. Não é nenhuma maravilha de trabalho, não".
A premonição de Edoardo seria confirmada apenas 33 dias depois. O telefone tocou tarde da noite na minha casa em Bonn, antiga capital alemã, onde eu estava baseado. Era a Dorrit Harazim, chefe dos correspondentes internacionais do JB.
"Kotscho, te prepara para voltar a Roma. O papa morreu".
Pensei que fosse trote, ainda brinquei: "Como assim, Dorrit? Morreu de novo?".
A morte do novo papa complicou nossos planos, pois estava tudo acertado para a nossa volta ao Brasil. Já estávamos embalando as coisas e arrumando as malas. O jeito foi despachá-las de navio. Como tínhamos prazo para entregar a casa, não havia alternativa: a família toda foi para Roma, e lá ficamos, num pequeno hotel, à espera da fumaça branca que anunciaria a eleição do sucessor de João Paulo 1º e, com ela, nossa alforria. As meninas iam todos os dias comigo à praça de São Pedro para esperar sair a fumaça branca da Capela Sistina.
Eu também não via a hora de partir, e nada de os cardeais se entenderem. De repente, a surpresa: pela primeira vez, em mais de 450 anos, elegeram um papa não italiano, o polonês Karol Wojtyla. Ninguém comemorou tanto quanto minhas filhas, que, apesar de terem chorado ao deixar a Alemanha, agora só faziam planos para reencontrar os avós e nossos amigos no Brasil.
Vida de repórter, vida feliz.
Obrigado por tudo, Francisco, o papa que gostava de ser papa.
Vida que segue.