Exército de adolescentes: como Hitler da BA expõe doutrina na machosfera

"Estava com saudades disso aqui. Mostrar para essas 'ninfetinhas' quem continua mandando." A mensagem enviada por um militar que se identificava como Hitler da Bahia em um grupo no Telegram de ataques a meninas, caso revelado pelo UOL neste mês, indica como funciona a rede de ódio da chamada "machosfera" ou "manosfera" contra as mulheres.
O que aconteceu
Nas comunidades virtuais, dominada por adolescentes, costuma haver um líder adulto, como o Hitler da Bahia. "A atração por um homem mais velho, que consegue reunir 600 pessoas em um grupo no Telegram, é mais forte do que qualquer time de futebol, banda de rock. Esses meninos são transformados em membros de um poderoso exército, que, às vezes, pode pedir prova da fidelidade. Então, eles se organizam e atacam um inimigo em comum", explica o psicanalista Christian Dunker.
A manosfera é formada por diferentes grupos, de diferentes perfis, e um foco: o machismo. A misoginia pode desencadear ataques mais radicais, como o estupro virtual e o incentivo à automutilação. A pesquisadora Bruna Camilo explica que, ao menos no Brasil, não há uma divisão clara entre essas comunidades, mas a misoginia, ódio contra as mulheres, é uma característica em comum.
"Há uma sensação de liberdade em propagar o ódio contra as mulheres", diz ela. Camilo acompanhou cinco grupos no Telegram, entre 2021 e 2023, como parte do doutorado em sociologia na PUC-MG sobre relação entre gênero, misoginia e extrema-direita na internet.
Eles acreditam que a mulher está na sociedade para tirar os direitos dos homens, são interesseiras. Para esses meninos, a partir do momento em que elas ascendem socialmente, os direitos dos homens retrocedem.
Um desses perfis são os celibatários involuntários (incels, na sigla em inglês). Esses garotos culpam as mulheres pela dificuldade de se relacionar amorosamente e distorcem a teoria econômica do Princípio de Pareto, que falava no século 19 que 20% dos italianos detinham 80% da riqueza, para afirmar, sem provas, que 80% das mulheres só se interessam por 20% dos homens.
Esses jovens chamam as mulheres que os rejeitam de Stacy, classificadas de superficiais e promíscuas, e os homens de Chad, populares e musculosos. O sentimento de ser inadequado, que antes era resolvido com a formação de grupos na escola, hoje é atenuado na internet por comunidades misóginas, afirma Dunker.
Os grupos virtuais radicais funcionam num esquema de seita, que é caracterizado pela produção de provas de pertencimento. 'Você é um dos nossos porque se veste como nós, fala como nós? Você será um dos nossos com certeza se for capaz de cometer um crime pela gente' Psicanalista Christian Dunker ao UOL
'Machosfera'
Dentro da manosfera também existe a figura do "red pill". O termo normalmente é utilizado por homens mais velhos que se sentem superiores às mulheres e conseguem se relacionar sexualmente com elas, explica a pesquisadora Bruna Camilo.
Já os incels são formados majoritariamente por adolescentes que ainda não tiveram a primeira relação sexual. "Esses meninos mais novos não conseguem iniciar sua vida amorosa, sofrem bullying e são isolados. E onde é a válvula de escape? Na internet. Eles se conhecem em plataformas como o Discord [utilizada em jogos online], fazem amizades e conversam não somente sobre o jogo. Nesses grupos virtuais sempre tem um mais velho que vai cooptar esse garoto", afirma a especialista.
O termo "blue pill" é usado para homens que não descobriram a "verdade sobre as mulheres" e estão presos em relacionamentos. Os "black pills" se sentem ainda mais inferiores e acreditam que nunca serão atrativos para as mulheres. A analogia feita por pílulas tem relação com o filme "Matrix", de 1999, em que o comprimido azul representa a ignorância, enquanto o vermelho simboliza a verdade (veja mais abaixo glossário com termos da machosfera).
Caso Eloá é celebrado em grupos no Telegram. Bruna Camilo flagrou jovens que, segundo ela, teriam por volta de 18 anos, tratando como herói Lindemberg Fernandes Alves, que matou Eloá Cristina Pimentel, em 2008, após mantê-la em cativeiro por mais de 100 horas.

Alerta aos pais: 'Redes sociais são a nova rua'
Juíza viu frequência nos crimes virtuais aumentar a partir de 2019. Vanessa Cavalieri, da Vara da Infância e Juventude do Rio, julga casos de crianças e adolescentes há dez anos e diz que houve uma virada: quando as audiências protagonizadas por casos de furto e tráfico de drogas passaram a discutir também estupro virtual, ameaça e racismo na internet.
Comecei a me dar conta desse sofrimento invisível, que só era visto quando a criança ou adolescente cometiam um ato infracional, quando ele passava de vítima para agressor.
Desde então, ela passou a defender a proibição de redes sociais por crianças e o monitoramento de adolescentes pelos pais. "Se os adolescentes não têm idade para estarem sozinhos na rua, sem nenhuma supervisão de adulto, então também não podem estar na internet. A internet é uma rua virtual em que ele sai sozinho e sem dizer para onde vai", diz.
Não existe privacidade na internet, nas redes sociais ou nos grupos de WhatsApp, argumenta ela. "Os pais não serão invasivos se monitorarem os filhos, porque eles precisam lembrar que não existe privacidade na internet. O que a gente faz no ambiente virtual já é monitorado pelas big techs e pela polícia", diz Cavalieri.